sexta-feira, 29 de maio de 2015

Uma história que deu samba (Final)


“A noite foi feita para o sonho. De dia, a gente tortura-se para pagar as contas. De noite, a gente se delicia a contar as estrelas... O dia é masculino. A noite leva tremenda vantagem porque é feminina”, filosofava Lamartine Babo.
“Lapa, minha Lapa querida, / Miguelzinho Camisa Preta, Meia-Noite e Edgard... / Lapa, minha Lapa boêmia / A lua só vai pra casa / Depois do sol raiar”, cantava Wilson Batista.
A definição de Lamartine Babo e o samba de Wilson Batista descrevem o estado de espírito e o hábitat do boêmio carioca, nos anos 30 e 40, quando o bairro, com casarões antigos já transformados em repúblicas de estudantes, ateliês de artistas (Cândido Portinari tinha o seu na Rua Totônio Regadas), prostíbulos com francesas e “polacas” importadas, rodas de intelectuais em que Manuel Bandeira pontificava, era considerado o Montmartre dos trópicos.
O escritor Gastão Cruls chega a pincelar uma comparação (em seu livro “Aparência do Rio de Janeiro”) do Convento de Santa Teresa, com o Sacre Couer, a cavaleiro da colina parisiense, na vigília sobre o verdadeiro Montmartre.
Francesismos à parte, a boemia carioca era tão animada quanto a parisiense.
Tudo o que se poderia esperar da noite, da madrugada, estava na Lapa.
Música, espetáculos, mulheres, bebidas, restaurantes, a vida a ser vivida como se deve.
Artistas e plateia, cantores e cantoras, compositores e músicos, intelectuais e vagabundos, desocupados e trabalhadores, vigaristas e cafetões, prostitutas e vendedoras de flores, traficantes e viciados, isto era a Lapa.

Território demarcado pela boemia que habitava seus cabarés e cafés, frequentada pelos compositores e lugar onde se privilegiava o samba, a Lapa nasceu pacífica e tranquila.
Suas primeiras notícias datam de cerca de 1750, momento em que o bairro inicia sua formação no entorno de uma capela construída em louvor de Nossa Senhora, nas cercanias da antiga praia das Areias da Espanha.
Somente no princípio do século passado é que a fama da Lapa como local de boemia começa a se consolidar. O período de glória vai de 1910 a 1940. O apogeu é nos anos 30, anos românticos, tempos em que a região, com velhos prédios e pardieiros, tinha charme próprio, sem beleza, mas bem característico.
Era a Lapa dos cabarés, dos cassinos, das mulheres e das músicas. A figura do malandro que preferia ganhar a vida no macio, bem vestido, sustentado por mulheres ou pelos golpes que aplicava nos “otários”, sempre usando a fina lábia, desprezando a violência.
Os valentões, os “brabos”, preferiam vender proteção aos cabarés, cobrando “estia” todas as noites. 
Aí, entravam em cena Miguelzinho Camisa Preta, Madame Satã, Meia-Noite, Jorginho, Edgard e até o sobrinho de um ministro de Estado, Joãozinho da Lapa, matador famoso, que acabou (como sempre) fuzilado em uma cobrança.

O ator Lázaro Ramos deu vida ao homossexual “Madame Satã”
Os compositores Brancura e Baiaco também faziam parte deste time, mas, sambistas respeitados, preferiam agir pelos lados do Mangue.
O Mangue, zona de baixo meretrício, e a Cinelândia formavam com a Lapa o triângulo da boemia, com relevância muito maior para o chamado bairro das quatro letras.
Lá, em cabarés como o Apolo, o Brasil Dourado e no primeiro deles, chamado Primor, era fácil encontrar Noel Rosa, em uma das mesas. Geraldo Pereira e Cyro Monteiro também eram habitués.
Nelson Gonçalves cantou em muito deles e foi na Lapa que fez fama de valente: sem saber de quem se tratava, deu um cruzado no queixo de Miguelzinho Camisa Preta e o nocauteou.
Para manter a reputação, teve que bater em muita gente até sair da Lapa que, como ele mesmo dizia, “era território de malandro, valente ou otário, e eu não me achava nenhuma das três coisas”.
No Casanova e no Novo México, eram comuns as festas em honra de cantores ou compositores. Os gerentes ofereciam a homenagem e a casa, invariavelmente, conseguia um show de graça.
Foi assim que Noel compôs o clássico “Dama Do Cabaré”, inspirando-se em Ceci, uma de suas namoradas. O Cabaré Apolo fez para ele uma festa de São João e, em suas mesas, nasceu o famoso samba.
Em compensação, foi em outro reduto boêmio do Rio, o Ponto Chic, de Vila Isabel, que Noel compôs “Prazer Em Conhecê-lo”, samba feito após frustrado encontro com Clarinha, outra de suas namoradas.

Wilson Batista gostava mais da turma da pesada. Vestia-se, elegantemente, como malandro, sem dispensar a navalha, que nunca usou.
Com os parceiros mais frequentes, gostava de fazer a ronda noturna, começando pelo Café Nice, onde demorou a chegar, pois, no início, preferi os da Praça Tiradentes, o Café Carlos Gomes (depois, Café Thalia) e a Leiteria Dom Pedro I.
Eram locais procurados pelos compositores ainda pouco conhecidos, que depois de famosos se transferiam para a Confeitaria Colombo e para o Café Nice.
Ao lado de Marino Pinto, Benedito Lacerda ou até mesmo Assis Valente, que foi pouco boêmio, apesar de seus samba “Boneca De Pano” (“Gingando / Num cabaré / Poderia ser bonequinha de louça / Mas não é”), Wilson Batista gostava de dar uma passadinha nos taxi-dancings, apenas para ouvir as orquestras excelentes e conferir os crooners cantando seus sambas.
Do Avenida ia para o Brasil e o Belas Artes, antes de jantar em restaurantes que nunca fechavam as portas, como o Maranguape e o Sereia.

Em matéria de comer bem, compositores, músicos e cantores jamais puderam reclamar. 
Nos baixos do Teatro Municipal funcionava o Assírio, com sua decoração peculiar.
O Reis era conhecido pela generosidade de seus churrascos e o Capela alimentou gerações de boêmios.
Sem contar as famosas leiterias, sempre de plantão, a Bol, a Dom Pedro I e a Nevada.
Nas mesas das leiterias, a boemia era mais literária que musical. Além dos artistas plásticos e poetas moradores da região, era comum a frequência de políticos e intelectuais, a confirmar os ares de Montmartre que a Lapa insistia em manter.
O revolucionário Agildo Barata, os escritores Jorge Amado e San Tiago Dantas, os pintores Cândido Portinari e Emiliano Di Cavalcanti, o maestro Heitor Villa-Lobos, os jornalistas Rubem Braga e Prudentinho de Moraes, o poeta Manuel Bandeira e o escritor Mário de Andrade eram, habitualmente, vistos nas leiterias em tertúlias movidas a álcool, jamais regadas a leite.
Na porta do Café Indígena, o letrista Jorge Faraj, em companhia de outros compositores, entre eles Wilson Batista, chamou a atenção para a falta de uma torre na velha igreja da Lapa, surgindo a versão (depois desmentida pelo historiador Luiz Edmundo) de que a mesma fora derrubada por um tiro de canhão durante a Revolta da Esquadra.
Foi o bastante para (como tudo na Lapa) inspirar mais um samba e Wilson fez a segunda parte do samba que epigrafa este texto: “Falta uma torre na igreja / Vou lhe contar meu irmão / Foi no tempo de Floriano / Foi um tiro de canhão / Naquele dia o nome da Lapa / Encheu-se de glória / Deixou seu nome na história”.
Enquanto o Túnel Novo não ligou a Zona Sul ao centro do Rio de Janeiro, a Lapa reinou absoluta na boêmia. Copacabana, Ipanema e Leblon eram apostas para o futuro.
E, enquanto o futuro não chegava, a elegância de Custódio Mesquita passeava nas noites da Lapa, fazendo sambas maravilhosos em parceria com Mário Lago, de preferência no Café Suisso, onde se comiam as melhores empadas da cidade.

Sílvio Caldas esperava Orestes Barbosa terminar seu expediente na redação dos jornais e desses encontros nasciam joias, das quais “Chão De Estrelas” pode ser o maior exemplo. 
Como compositor, Sílvio sempre teve no poeta Orestes o seu melhor parceiro.
Francisco Alves garimpava seu repertório em diversos cafés, mas só depois de assinar o ponto no Café Nice.
É conhecida a história de sua chegada ao Café da Uma Hora, no Largo do Maracanã, e encontrar Noel Rosa e Cartola, que pediram “um vale”, pois estavam completamente sem dinheiro e matando cachorro a grito.
Aproveitando-se da situação, o cantor comprou dois sambas inéditos da dupla por cem-mil réis. Detalhe: exigiu que os sambas (“Qual Foi O Mal Que Te Fiz” e “Estamos Esperando”) fossem criados na hora. Foi atendido.
Compor na madrugada não era problema para Noel Rosa, que, aliás, não era muito de frequentar o Café Nice. Preferia as mesas do Trianon, localizado nas imediações e menos badalado.

Foi lá que uma desesperada Aracy de Almeida conseguiu encontrá-lo no meio da noite. Ela tinha combinado de cantar um samba dele no filme “Alô Alô Carnaval” e, até a véspera, a música não aparecera.
Na maior tranquilidade do mundo, Noel mandou Aracy sentar, pediu lápis e um guardanapo de papel de um garçom e, quase na mesma hora, compôs nada menos que o samba “Palpite Infeliz”.
Em outra oportunidade, com horário de gravação marcado na RCA Victor para o dia seguinte, Aracy apareceu no Trianon à procura do compositor. Ele pediu que ela voltasse às três horas da madrugada.
Quando chegou, a letra de “O Xis Do Problema” estava rabiscada no papel de um maço de cigarros Odalisca. Em seguida, ele fez a música.
Grandes poetas e grandes músicos foram boêmios. Excepcionais obras de arte musical nasceram na boemia.

Nelson Gonçalves a definiu com a sabedoria de quem conhecia o assunto em profundidade: “O boêmio – e eu ainda sou um deles – é o homem capaz de sentir toda a beleza e os mistérios da noite, ver estrelas, chorar e cantar pela mulher amada que o deixou ou não. Entender de poesia, respeitar os romances que acontecem na madrugada, saudar o por e o nascer do sol. Quem não viu uma cena de ciúme na madrugada não é boêmio.”
Boemia, portanto, é estilo de vida, quase profissão e condição necessária para aqueles que se dedicaram a compor ou a cantar os sambas que enterneceram os corações.
Ser boêmio é ser acima de tudo humano, compreensivo, amigo e, como amigo, saber perdoar.

Como no caso do samba “Louco”, parceria de Wilson Batista e Henrique Almeida.
O samba fora inscrito no concurso de Carnaval da Rádio Clube e Henrique, que trabalhara muito divulgando ele, teve que viajar para uma temporada na Argentina, antes do resultado.
Deixou a esposa grávida de oito meses e pediu a Aracy Almeida, intérprete da composição, que, em caso de vitória, sua parte do prêmio fosse entregue à mulher dele.
O samba venceu, Aracy pediu a ela que procurasse Wilson. 
Este disse que o parceiro o encontrasse na volta da viagem.
Tão logo chegou, Henrique partiu em busca de Wilson, que sumiu no trecho. 
Até que um dia, encurralado no Café Nice, confessou que recebera o dinheiro, gastara e, quando pudesse, pagaria.
Henrique ouviu calmamente e, ao final da conversa, abriu uma navalha e partiu pra cima do parceiro, que fugiu pulando as mesas, desaparecendo pela Galeria Cruzeiro.
Tempos depois, amigos de ambos intercederam, a amizade dos dois foi reatada e a dívida paga em módicas prestações.
Como na letra do poeta, enquanto houver um boêmio, haverá samba.
E quem quiser que conte outra.

Uma história que deu samba (16)


De repente, em pleno desfile, a bateria da Mocidade Independente quase emudece. Apenas uma caixa repica, mantendo o ritmo, enquanto a escola continua cantando e desfilando majestosa.
Nascia a “paradinha” de Mestre André, que também revolucionou o carnaval carioca.
Entre os fundadores da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel, consta o nome de José Pereira da Silva, o que, dito assim, sem mais aquela, não terá maior significado, nem no subúrbio que abriga a hoje famosa Escola verde e branca.
Mas, em qualquer botequim onde se fale de samba, em todo o Rio de Janeiro, nas pesquisas dos historiadores do assunto, na memória dos sambistas e no imaginário das novas gerações, 
Mestre André ocupa o lugar reservado a uns poucos predestinados, aos quais o samba deve boa parcela do prestígio que agora desfruta.
E Mestre André não era outro que o quase anônimo José Pereira da Silva.

Organizando, dirigindo, ensaiando e, principalmente, liderando a bateria da Mocidade, Mestre André – mestre, por suas funções frente aos batuqueiros, e André, não se sabe bem porque – transmitiu-lhe características tão próprias que, em muitos desfiles, mesmo sendo sua escola a última a desfilar, milhares de pessoas esperavam, apenas para desfrutar o sabor de ver e ouvir a bateria, que jamais recebeu nota menor que 10.
Os historiadores Amaury Jório e Hiram Araujo contam como nasceu a “paradinha” da Mocidade, em seu primeiro desfile no Grupo 1, no Carnaval de 1959: “Na Avenida Rio Branco (que Mestre André) criou a parada quase total, deixando somente a caixa de guerra repicando. O povo que assistia ao desfile, calorosamente, aplaudiu, gritando ‘olé’”.
Em anos posteriores, a Mocidade, além da caixa de guerra, fazia soar separados ora a cuíca, ora os tamborins ou os reco-recos.
Até o final da vida, Mestre André comandou a Bateria Nota 10, que mesmo sem ele mantém o mesmo nível.
Quando no bairro de Padre Miguel, no Rio de Janeiro, nasceu o Independente Futebol Clube, em 1952, seus fundadores não Imaginavam que estavam criando o núcleo de uma das maiores escolas de samba da cidade.

O time ia bem, ganhava a maioria de seus jogos, tornava-se popular, mas com o passar do tempo e as rodas de samba que se armavam, depois das partidas de futebol, a rapaziada achou que já era hora de transformá-lo em escola de samba.
Foi assim que, três anos após a fundação do clube, a 10 de novembro de 1955, com as mesmas cores verde e branco do time de futebol, nasceu o Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel.
A comunidade de Padre Miguel uniu-se em volta da nova escola, que teve entre os pioneiros nomes como os de Sílvio Trindade, Renato Ferreira da Silva, Djalma Ferreira da Silva, Joaquim e Jorge Lopes, Garibaldi Faria Lima, Altamiro V. Menezes (o Cambalhota), Itamar de Oliveira, Sebastião (Tião) Marinho, Alfredo Briggs, Pavão, Saco, Mário Perini, Nonô, Noel, Helena e José Pereira da Silva, que o samba batizou como Mestre André, o mais famoso mestre de bateria da história de todas as escolas de samba.
Esses nomes – e outros mais – são reverenciados hoje como os que possibilitaram os primeiros passos da Mocidade Independente, no caminho que a tornaria uma das grandes representantes do samba carioca.
A escola fez seu desfile inaugural, de forma não-oficial e limitado ao bairro, mas o bem desenvolvido enredo “Navio Negreiro” levou-a ao primeiro lugar.
Em 1957, já desfilando na Praça Onze, a Mocidade Independente, com o enredo “Baile das Rosas”, obtém a quinta colocação.

Thatiana Pagung, rainha de bateria da Mocidade Independente
A figura de Mestre André, como um regente erudito, usando a batuta, em vez de apito, encantando com seus breques, as famosas “paradinhas” e inesperadas mudanças de andamento, ia se tornando conhecida.
Sua competência ganhava elogios e a bateria passava a ser atração complementar dos desfiles, como no carnaval de 1958, no desfile da Praça Onze, quando a Mocidade venceu e ganhou a promoção para o Grupo 1.
Em seu primeiro desfile no grupo das grandes, a Padre Miguel conquistou o quinto lugar com o enredo “Os Três Vultos Que Ficaram Na História”, conseguindo os prêmios de melhor mestre-sala e porta-bandeira e como era esperado – melhor diretor de bateria.
1959 foi o ano em que o carnaval conheceu a marca registrada da bateria da Mocidade, os famosos breques.
Durante alguns anos, a Mocidade viveu das performances de sua bateria, mantendo-se no grupo intermediário das escolas do Grupo 1, ou Grupo Especial, como veio a ser chamado algum tempo depois.
Situava-se entre o quinto e o oitavo lugares, até dar a arrancada que a elevaria para o nível das primeiras colocadas.

Roberto Dinamite e o vascaíno Andrezinho, ex-vocalista do grupo Molejo, coordenador da bateria da Mocidade e filho do lendário Mestre André
Mas antes houve uma dura injustiça, cometida no carnaval de 1970.
O cenógrafo Arlindo Rodrigues, famosos pelo trabalho desenvolvido na Acadêmicos do Salgueiro, foi convidado pela Padre Miguel.
De reconhecido bom gosto, preparou um carnaval belíssimo para o enredo “Festa do Divino”, e a Mocidade foi para o desfile com a garra, a disposição e o temperamento das grandes escolas de samba.
Harmonia, alegoria e fantasias, em perfeito acordo com o excelente samba, faziam a arquibancada gritar o tradicional “já ganhou” e o clima de vitória se instalar na escola, mas, surpreendentemente, o julgador de fantasias atribuiu nota 4 ao quesito, justo para o qual todos esperavam 10.
Com isso, a Mocidade perdeu o título, pois classificou-se em quinto lugar, quatro pontos abaixo da Acadêmicos do Salgueiro, a campeã.
Como a popularidade aumentava a cada ano, a Escola ia atraindo muitas figuras de renome.

Uma delas foi a cantora Elza Soares, que “puxou” o samba da Mocidade várias vezes nos desfiles. 
Autêntica componente, jamais cobrou cachê por suas participações.
Por outro lado, o patrono Castor de Andrade sempre contribuiu financeiramente para a montagem dos Carnavais.
As vitórias se iniciariam em 1990, com o enredo “Vira, Virou” e, em 1991, com “Chuê, Chuá, As Águas Vão Rolar”.
De lá para cá, até computadores a Mocidade usa nos desfiles, para melhorar a performance do enredo. 
A bateria continua perfeita, seguindo a filosofia inovadora de Mestre André, por conta de seu filho Andrezinho.

Uma história que deu samba (15)


“Qualquer criança bate um pandeiro / E toca um cavaquinho, / Acompanha o canto de um passarinho / Sem errar o compasso. / Quem não acreditar poderemos provar, / Pode crer, nós não somos de enganar, / Melodia mora lá no Prazer da Serrinha...”
O samba de Hélio dos Santos, o tio Hélio, e Rubens da Silva é o primeiro retrato musical da Escola de Samba Prazer da Serrinha.
Como a maioria das coirmãs, ela nasceu da união de componentes de vários blocos carnavalescos que existiam no morro da Serrinha, formados pela mesma massa humana expulsa dos logradouros mais valorizados do centro da cidade do Rio de Janeiro e que procurou abrigo nos morros da periferia.
Havia também os interioranos, que abandonavam trabalhos agrícolas no Espírito Santo, São Paulo, Estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais, e os escravos recém-libertos, que procuravam sobrevivência no então Distrito Federal, a Guanabara.
Situado no distante subúrbio de Madureira, o morro da Serrinha não podia oferecer outro lazer para seus habitantes, que não fosse a música.
Assim, desde que começou a ser habitado, passou a contar com grupos carnavalescos de blocos familiares, que reuniam esses primeiros moradores.
Francisco Zacarias de Oliveira, funcionário da Companhia de Limpeza Urbana, foi um dos pioneiros, tendo sido fundador de blocos como Primeiro Nós, Bloco da Lua, Dois Jacarés e Três Jacarés.
Antes deles, no Beco dos Novaes, a moçada já brincava no Bloco Borboleta Amorosa.
Alfredo Costa, que viria a ser um dos principais donos do samba na Serrinha, guarda-freios da Estrada de Ferro Central do Brasil, iniciou carreira como fundador do famoso bloco carnavalesco Cabelo de Mana.

Foi esse bloco, surgido em meados dos anos 20, a origem da Escola de Samba Prazer da Serrinha, que desde a sua criação foi comandada com mão de ferro por Alfredo Costa. 
Como ocorrera no Cabelo de Mana, quem mandava na Escola era seu Alfredo e a família.
A mulher, Araci Costa, a Dona Iaiá, chegou a ser eleita a Rainha do Samba em 1937, e os irmãos dela, Delfino, Chico e Teodomiro, ocupavam os postos-chaves na administração da Prazer da Serrinha.
Era seu Alfredo quem autorizava ou negava a entrada de qualquer elemento novo na Escola. 
O candidato tinha que se submeter a rigoroso exame feito por ele.
O sambista Mano Décio da Viola – que passou a ser conhecido assim na Prazer da Serrinha – foi um dos que sofreu a “sabatina” de seu Alfredo. 
Ele não foi o único.

Fuleiro, o grande Mestre Fuleiro, um dos maiores diretores de harmonia da história do samba, teve muitos problemas com Alfredo Costa.
Até mesmo o cunhado Chico quase provocou uma cisão na escola após uma discussão feia com Alfredo, ao desfilar com uma ala de baianas própria, na Festa da Penha.
A maior contestação à autoridade de seu Alfredo aconteceu no carnaval de 1945.
O belo enredo era “Cais Dourado”, que no dia do desfile sofreu com a chuva, complicando a descida do morro.
Para culminar, Mestre Fuleiro, diretor de harmonia, cerceado por ordens de Alfredo Costa, quebrou todas as alegorias, distribuiu sopapos, deu pernadas, iniciando um tumulto que envolveu todos os componentes.
A Prazer da Serrinha compareceu simbolicamente ao desfile, apenas com sua bandeira, Alfredo Costa e uns poucos sambistas.
Em 1946, Antônio Caetano, fundador da Portela, filiou-se à Serrinha. Trouxe um enredo pronto, “A Conferência de São Francisco”, que foi musicado por Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira.
A escola estava bem ensaiada, o enredo apropriado e todos acreditavam em um grande carnaval. 
Na hora de iniciar o desfile veio a ordem de Alfredo Costa para trocar o samba. 
Mano Décio retirou-se chorando.
Para o resto da escola, o desânimo foi total e resultou no décimo primeiro lugar.

Sebastião de Oliveira, o Molequinho, deu o grito de protesto, em forma de samba. Ao lado da bica d’água que abastecia o morro, cantava: “Quase que chorei/ Quando nossa escola desfilou/ Senti grande emoção que meu coração quase parou/ O samba do concurso/ Não era aquele/ Era um samba harmonioso/ Que o Mano Décio escreveu”.
A cisão definitiva viria apenas no ano seguinte. Abaixo-assinados contra a diretoria da Prazer da Serrinha corriam o morro, sambistas não compareciam aos ensaios e prometiam não desfilar.
Mas mesmo assim, completamente desorganizada, a escola conseguiu ainda sair no desfile de 1947.
A situação, porém, era incontornável, e logo após o carnaval, em 23 de março de 1947, Sebastião Molequinho chamava as lideranças do morro para uma conversa na casa de sua irmã Eulália, na Rua da Balaiada. Ela e o marido, José Nascimento, eram figuras respeitadas.
No aniversário de José, os mais famosos jongueiros do Rio se reuniam na casa do casal, onde era fácil achar Mano Elói, Manuel Bam-Bam-Bam e seu Rufino da Portela, entre outros.
Molequinho, acostumado a viver entre os líderes, conta o resultado do encontro, ao qual compareceram nomes como os de João Gradim, Mestre Fuleiro, Silas de Oliveira, Manula, Fumaça, Mano Elói e Antônio Caetano (que rabiscou o projeto da bandeira): “Com a presença de consagrados artistas, foi solicitado aos presentes que apresentassem para discussão o nome que se daria à futura escola e as cores de seu pavilhão. Foi proposto por mim o nome de Império Serrano, aceito por unanimidade. Propus também as cores azul e amarelo-ouro, não sendo aprovadas. As cores verde e branca, que tanto têm nos abrilhantado, foram escolhidas pelo Antenor, que é inclusive autor do primeiro samba do Império Serrano, destacando em seus versos as cores da escola.”
Estava fundado o Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, que, ao colorir a avenida de branco e verde, foi apelidado carinhosamente pelos sambistas de arroz-com-couve.
Um prato tão forte e substancioso que não deixou por menos: campeão em seu primeiro ano, em seu primeiro desfile, colocando-se à frente da Mangueira, Portela, Unidos da Tijuca e outros bichos-papões.
Quando as notas chegaram, com a vitória do GRES Império Serrano, Alfredo Pessoa, da Secretaria de Turismo do Rio e integrante do júri, tentou argumentar que não ficaria bem uma estreante ganhar das grandes escolas tradicionais.
Antes que alguém tentasse modificar o resultado, o jornalista Irênio Delgado levou os mapas de apuração ao locutor Heron Domingues, e, com a divulgação, a vitória foi consumada.
Irênio era figura de prestígio entre os sambistas, vice-presidente da Federação Brasileira das Escolas de Samba, criada para fazer a frente à União Geral das Escolas de Samba, acusada de tendências comunistas.

Mano Elói, sabendo que Irênio era amigo do prefeito Mendes de Morais, tratou de atraí-lo para a Império Serrano.
A posterior eleição de Irênio para a presidência da Federação acabou por fazer com que Mangueira e Portela se desligassem da mesma.
No ano seguinte, 1949, a campeã foi a Império Serrano. Em 1950, quem venceu foi a Império Serrano. No Carnaval de 1951, o título foi para... a Império Serrano. Tetracampeã logo ao nascer.
Quatro campeonatos seguidos, formando os alicerces de um futuro repleto de conquistas e vitórias. Quatro títulos enfeitando um berço de ouro imperial.
Poderiam querer mais – para começar uma história destinada a coloca-los entre os maiores do samba, em todos os tempos – os insatisfeitos dissidentes da Prazer da Serrinha?
Na verdade, o Palácio do Samba imperiano nasceu modesto. O luxo era o talento dos seus bambas. A riqueza, a inspiração de seus poetas. O patrimônio, a beleza de suas cabrochas e a determinação de seus fundadores. Sua fé, a Serrinha.

Dona Ivone Lara e Clementina de Jesus
Enfermeira de profissão durante muitos anos, Ivone Lara é um exemplo perfeito das jovens suburbanas cuja vida inteira se desenvolveu ao redor do samba.
Casou-se aos 25 anos de idade com Oscar Costa, filho de Alfredo Costa, presidente da escola de samba Prazer da Serrinha, onde conheceu alguns compositores que viriam a ser seus parceiros em algumas composições, como Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira.
Devotada à sua Serrinha, cresceu com a Império Serrano e, fazendo sambas, como única mulher compositora na ala, tocando cavaquinho, cantando com voz de rara beleza, construiu sua carreira musical.
Só ela é apresentada com respeito como Dona (Ivone Lara) em shows e espetáculos. E, por tudo isso, se transformou, com inteira justiça, na grande dama da Escola de Samba Império Serrano.
Ao chegar à Serrinha por volta de 1916, Antônio dos Santos estava destinado a ser o Mestre Fuleiro, figura básica na história do samba.
Substituindo por acaso o diretor de harmonia em um ensaio da Escola de Samba Prazer da Serrinha, descobriu sua vocação para o cargo e se tornou um dos maiores de todos os tempos.
Desde a fundação da Império Serrano, para a qual contribuiu, brigando até fisicamente na Serrinha, ocupou a função e com tal influência que seu nome passou a representar um dos sinônimos da Escola de Madureira.
No “púlpito” dos compositores, comum em todas as quadras das escolas, Silas de Oliveira Assumpção e Décio Antônio Carlos não poderiam estar mais à vontade.

Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola formaram a mais perfeita dupla de compositores de sambas-enredos da história do gênero.
De origens diversas – Silas era carioca, do subúrbio, e Mano Décio, baiano da musical cidade de Santo Amaro da Purificação –, conseguiram entrosamento perfeito e a eles a música popular brasileira deve a fixação do samba-enredo.
A partir deles, foi codificado o trabalho dos compositores naquele gênero. 
Mano Décio levou Silas para a Serrinha e fez aflorar seu talento.

De temperamentos diferentes, Mano Décio era extrovertido, frequentando o samba desde a infância, transitando pela Mangueira e por vários outros redutos de samba.

Contrastava com Silas, criado nos dogmas do protestantismo e caseiro por excelência, preferindo curtir a mulher e os filhos à boêmia. 
Mas, na hora de compor, viravam irmãos siameses, ourives do samba.
Os dois desfiles de estreia do GRES Império Serrano não foram realizados exatamente no carnaval. Quem conta é Molequinho, aquele que fazia tudo desde o primeiro instante de fundação da escola: “Preparamo-nos para a saída de Aleluia do ano de 1947 e percorremos Madureira, Vaz Lobo e Irajá, tendo uma estrondosa recepção por parte do povo. A partir daquele dia senti que meus esforços tinham sido recompensados”.
Depois, a escola participou de um desfile na passagem do ano de 1947 para 1948, na Praça Mauá. Aquele se transformou no primeiro desfile da Império Serrano fora de seu local de origem.
E isso só foi possível porque os instrumentos da bateria, pertencentes à extinta escola Deixa Malhar, da qual Mano Elói foi dirigente, foram doados por ele à nova escola.
O primeiro desfile oficial foi com o enredo “Castro Alves”, em 1948. Como já havia um samba com esse nome, correspondendo ao enredo, ele foi escolhido.
Molequinho, coordenador da escola, entrou como parceiro. Mano Décio apanhou uma carona e também aparece na parceira. Na verdade, o único compositor foi Comprido.

A vitória da Império Serrano, logo na estreia, ficou entalada na garganta das grandes escolas, principalmente da Portela, que tinha sido convidada para batizar a vizinha de Madureira.
Antes mesmo do anúncio do resultado oficial, a Império resolveu visitar a madrinha.
Foi recebida friamente por um discurso de Alvaiade, que previa “em futuro distante”, algum sucesso para os imperianos.
Anunciada a vitória, a Portela assumiu a restrição e recusou-se a batizar a Império.
Em 1949, em razão dos conflitos entre as escolas, realizaram-se dois desfiles.
No oficial, o da Federação Brasileira das Escolas de Samba, venceu a Império Serrano, com o enredo “Exaltação a Tiradentes”, samba-enredo de Mano Décio, Penteado e Estanislau Silva.
No ano seguinte, de novo dois desfiles agora ambos oficiais.
No da Federação, a Império Serrano voltou a ser campeã, com “Batalha Naval do Riachuelo”, samba de Mano Décio, Penteado e Molequinho.
A Mangueira ganhou o desfile da União Cívica das Escolas de Samba e a Prazer da Serrinha fez sua última apresentação no desfile não-oficial da União Geral das Escolas de Samba do Brasil.

A Império volta à avenida em 1951 (ano em que Getúlio Vargas retoma o poder pelo voto) com o enredo “Sessenta e Um Anos de República”, samba assinado por Silas de Oliveira, getulista convicto. Conquista o tetracampeonato, aumentando o desespero das rivais.
A chance de enfrentar a Império foi dada à Mangueira e à Portela em 1952.
O desfile foi unificado e todas elas iriam para a mesma pista. Na hora do desfile da Império, um temporal desabou sobre o Rio de Janeiro, expulsando os jurados, que não atribuíram notas.
Prejudicada, a Império solicitou a anulação do desfile e conseguiu. Não houve campeã no carnaval de 1952.
Com Waldir Medeiros e João Fabrício, Silas de Oliveira compôs “O Último Baile da Corte Imperial”, que se tornou conhecido como “Ilha Fiscal”. Pela primeira vez a Império não é campeã.
Em 1953, ficou em segundo lugar, que viria a repetir-se ano seguinte, quando desfilou com “O Guarani”, cujo samba-enredo foi novamente de Silas de Oliveira, agora em parceria com João Fabrício e Penteado.
A Império Serrano voltaria a ser campeã em 1955, com “Exaltação a Caxias” (Silas e Mano Décio), e em 1956, com “Esmeraldas”, da mesma dupla.

Em 1960, ano em que foi campeã ao lado da Portela, Mangueira, Salgueiro e Capela, a Império apresentou-se com “Medalhas e Brasões”, também de Mano Décio e Silas.
Mano Décio comporia “Rio dos Vice-Reis” (1962), com Aidno de Sá e David do Pandeiro, e também o último samba-enredo de Silas exibido pela Império, o clássico “Heróis da Liberdade”, em 1969, que ainda teve Manoel Ferreira como parceiro.
Silas fez, com D. Ivone Lara e Bacalhau, “Cinco Bailes Tradicionais na História do Rio” (1965), e sozinho, “Pernambuco, Leão do Norte” (1968).
O final da parceria entre Mano Décio e Silas aconteceu paradoxalmente em uma escola de samba de São Paulo.
No mesmo ano de 1969, comporiam, também com a ajuda de Manoel Ferreira, “Grito do Ipiranga”, para a Escola Império do Samba, que foi campeã do carnaval de Santos.

Uma história que deu samba (14)


No domingo de carnaval de 1946, seu China conversava com amigos. Eles tomavam uma cervejinha na esquina da Praça Sete com Rua Barão de São Francisco, na Vila Isabel, quando se voltaram para o Bloco Acadêmicos da Vila, que passava.
Vestido de vermelho e branco, o bloco de Aílton Pinguim mostrava por que era admirado no bairro, desfilando organizado, todos fantasiados, isolados por uma corda, mais parecendo uma miniescola de samba.
A ideia estalou na cabeça de seu China. Por que não fundar uma escola de samba na Vila Isabel?
Após o carnaval, seu China (Antônio Fernandes da Silva, líder natural no bairro) tinha conquistado vários adeptos.
Em sua casa, na Rua Senador Nabuco, 248, casa 3, no Caminho Central, que dava acesso ao morro dos Macacos, foram realizadas as primeiras reuniões. Lá mesmo, no quintal, a nova escola faria os primeiros ensaios.
Seu China foi o “pai” da Unidos de Vila Isabel, cujas cores escolhidas, azul e branco, eram uma homenagem a ele, que fizera parte, antes, da Escola de Samba Azul e Branco, do morro do Salgueiro.
Em 4 de abril de 1946, a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel estava fundada. Seu núcleo eram os antigos brincantes dos Acadêmicos da Vila e do bloco de D. Maria Tataia, formados por “gente de família”, vinda do morro dos Macacos, ao pé do qual repousa a Vila Isabel.
Presente de D. Pedro I à sua segunda esposa, D. Amélia Leutchemberg, a antiga Fazenda dos Macacos, comprada depois pelo Barão de Drummond (o inventor do jogo do bicho) e batizada em honra da princesa, então Regente, com o nome de Vila Isabel, berço de Noel Rosa, já tinha a sua escola de samba.


O primeiro presidente só poderia ser seu China. Os diretores eram Antônio Rodrigues, o Tuninho Carpinteiro, Paulo Gomes de Aquino, o Paulo Brasão, Osmar Marino, Joaquim José Rodrigues, o Quinzinho, e Cléber Pereira da Silva.
Também faziam parte da direção, Djalma Fernandes da Silveira, o Djalma Sapo, filho do seu China, José Leite, o Zé Leite, e Dulcinéia Gomes de Aquino, irmã a de Paulo Brasão e primeira diretora da ala das baianas.
Os compositores ainda não se haviam organizada em ala. Paulo Brasão, Tião Graúna, Rosário, Zezé Fonfon, Simplício, Djalma Sapo e Severo Gomes de Aquino, irmão de Brasão, foram os pioneiros.
Com o crescimento da Escola, surge a Ala de Compositores, acrescida de Marinho da Vila, Aílton Rocha, Paulinho da Vila, Gemeu, Irani, Jonas, Jarbas, Ciro Baiano, Mariano Luz, Zé Branco, Guadalupe (Hílton Alfinito), Aluísio Machado, Arroz, David da Vila, Betinho, Tuninho, Luiz Carlos da Vila e Carlinhos, entre outros.

Tião Arroz e Raquel Amaral formaram o primeiro par de mestre-sala e porta bandeira. O primeiro carnaval da Vila foi em 1947. O enredo, “De Escrava a Rainha”, foi musicado por Paulo Brasão e, no desfile da Praça Onze, a Escola ficou em décimo segundo lugar.
Episódio curioso retrata os primeiros tempos. José Leite, diretor da Escola, foi quem contou a Martinho da Vila: “Em 1949, quando a Vila Isabel conseguia autorização para ensaiar num pedacinho do campo da Portuguesa, foi um acontecimento. Teríamos, a partir dali, nossa própria quadra. Acontece que, no local, não tinha luz elétrica, chegara a data da estreia e o velho China dizia para que não nos preocupássemos. Nós, jovens, íamos à loucura. Não havia um fio esticado na quadra, e eu não via solução. De tarde, seu China me chamou, tomamos o bonde, descemos na Praça Tiradentes. Na loja Três Braços, ele comprou 12 lampiões a gás. Durante muito tempo ensaiamos à luz deles. Era lindo!”
O primeiro título da Vila Isabel foi em 1960, desfilando no Grupo 3, na Praça Onze, com samba de Geraldo Babão (compositor salgueirense, que teve seus tempos áureos de Vila), “Poeta dos Escravos”.
Como vice-campeã, em 1956, com o enredo “Três Épocas”, subiu ao primeiro grupo.
Em 1965, foi outra vez vice, com o enredo “Epopeia do Teatro Municipal”, no Grupo 2.
No ano de 1974, já no Grupo Especial, Martinho da Vila sofre censura em seu samba “Aruanã Açu”, sendo obrigado a cortar trechos e mudar o enredo, que virou exaltação à estrada Transamazônica.

Para inovar no ano seguinte, a Escola convida o teatrólogo Flávio Rangel para criar o enredo.

Ele confessa seu desconhecimento sobre o assunto, mas gostaria de trabalhar em conjunto e enfrentar o desafio. Fez uma clara dissertação sobre o teatro e mostrou que uma escola em desfile é a maior manifestação teatral possível.
Tinha baixado o santo e naquele momento nascia o enredo: “O Teatro Brasileiro – Quatro Séculos de Paixão”. O sexto lugar foi animador.
Em 1976, novamente com Flávio Rangel e o enredo “Invenção de Orfeu”, a colocação se repete.
Em seguida, cai para o Grupo 1B, no qual é campeã em 1979, com o enredo “Os Dourados Anos de Carlos Machado”.
Em 1980, com grande samba de Martinho, Rodolfo Souza e Tião Graúna, chega a vice-campeã do Grupo 1A, apresentando o enredo “Sonho de Um Sonho”.
O maior desfile da Vila foi em 1988, quando se sagrou pela primeira vez campeã do primeiro grupo, depois de quarenta e dois anos. “Kizomba, Festa da Raça”, enredo e samba de Martinho da Vila, conduziu a Escola para a vitória, no ano do Centenário da Abolição da escravatura.

Falando nisso, a Vila Isabel era diferente, antes de Martinho. O próprio Martinho também era outro, antes de frequentar a Vila Isabel, o bairro e a escola de samba.
Quando chegou por lá, era um sambista conhecido, mas como Martinho da Boca, o compositor que já fizera grandes sambas para a Escola de Samba Aprendizes da Boca do Mato e que, vez ou outra, aparecia na Vila Isabel.
Convidado a ficar, influenciou e foi influenciado. Virou Martinho da Vila.

Com a força de seu talento e a beleza de seus sambas, que se tornaram sinônimos da Unidos de Vila Isabel, uniram-se de maneira indissolúvel a Vila de Martinho e Martinho da Vila. 
Tanto quanto ontem foi Noel Rosa, hoje Martinho é Vila Isabel e ambos são eternos.

Uma história que deu samba (13)


Em uma das reuniões preparatórias de fundação de uma nova escola de samba, um sambista sugeriu o nome: Catedráticos do Salgueiro. Do alto de sua sabedoria, o compositor Noel Rosa de Oliveira contestou: “Não dá. Esse nome vai destroncar a língua do pessoal do morro. Proponho Acadêmicos do Salgueiro”. Estava batizada a escola.
Assumido no desfile de 1958, quando Nelson Andrade sintetizou no slogan “Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente!”, o destino do Salgueiro ficou evidente já em seu surgimento.
Ao contrário da maioria, oriunda de blocos, a Acadêmicos é fruto da união de três pequenas escolas do morro do Salgueiro.
Na primeira metade dos anos 30, os foliões de lá se dividiam entre as escolas de samba Azul e Branco, Unidos do Salgueiro e Depois Eu Digo.
As três escolas eram patrocinadas, de forma igualitária, pelo industrial Antônio Almeida Valente de Pinto, que assinava grandes quantias nos Livros de Ouro de cada uma, chegando mesmo a doar a sede do Bloco Verde e Branco (que passaria a ser a Depois Eu Digo).
O presidente da Azul e Branco era o português Eduardo Teixeira e os principais destaques eram o diretor de harmonia, o compositor Antenor Gargalhada (Antenor Santíssimo de Araújo), e o sambista Paolino Santoro, que todos conheciam como Italianinho do Salgueiro.
A ala de baianas da Escola já era prestigiada e veio depois a enriquecer igual setor da Acadêmicos do Salgueiro.

Cidadão Samba de 1938, Antenor tinha voz possante, o mesmo acontecendo com o Italianinho, famosos por serem ouvidos no morro inteiro, quando abriam a garganta.
Embora não tivesse visto a Acadêmicos do Salgueiro nascer – morreu em 17 de janeiro de 1941 –, Antenor Gargalhada é reverenciado como o primeiro grande sambista salgueirense.
A Azul e Branco tem um dos mais bonitos episódios da história do samba.
No carnaval de 1947, pouco antes do desfile, soube-se que a porta-bandeira Ceci não podia comparecer. Desesperado, um dos diretores, seu Neca da Baiana, lembrou de Finoca, que desde menina saía na Escola. Foi busca-la na Ala dos Lordes e ela, apesar de grávida, não hesitou em tornar a bandeira e representar a agremiação, desfilando como se deve.
Tudo ia bem, até que, em um volteio mais rápido, a porta-bandeira teve de se apoiar no mestre-sala Ranulfo. Ela ainda tentou prosseguir, mas foi impossível. Hoje, Adelaidinha, que nasceu naquele momento, em pleno carnaval, é uma das passistas do Salgueiro, na qual desfila ao lado de... Finoca, é claro.
Lá no alto do morro, no Terreiro Grande, D. Elvira Arantes, Anacleto Português e seu Amaro adotaram as cores azul e rosa na fundação da Escola de Samba Unidos do Salgueiro.
Em seguida, uma figura imensa, um homem enorme e simpático, sorridente e comunicativo, chega ao morro e adere ao grupo.

Líder nato, usando calças sujas cujas bocas cobriam os sapatos, ganha logo o apelido que faria famoso: Casemiro Calça Larga (Joaquim Casemiro).
Ele organizava festas, ensaios, os conhecidos piqueniques na ilha de Paquetá, bailes animados e rodas de samba.
Partideiro de responsa e grande improvisador, Casemiro Calça Larga era respeitado por todos.
A mais fraca das três era a Depois Eu Digo, oriunda de um bloco de mesmo nome.
Seus sambistas, em menor número, ganhavam em qualidades dos das vizinhas: Servan Heitor de Carvalho, Pedro Ceciliano, o Peru, Paulino de Oliveira, Carivaldo Mota, João Sete, Olímpio Correia da Silva, Mané Macaco, além de outros.
A exemplo das coirmãs do morro, a Depois Eu Digo não conseguia se destacar. Se uma era forte na bateria, outra tinha melhores compositores e a terceira possuía excelentes passistas. Com os talentos diluídos, o morro do Salgueiro estava enfraquecido.

Foi quando, em 1953, Geraldo Babão convocou em samba todos os batuqueiros.
As baterias desceram unidas, arrastando o povo para a Praça Saenz Peña, numa soma de cores e bandeiras, o estopim da fusão.
Após várias reuniões – Calça Larga, a princípio, não aderiu, mas reconciliou-se depois –, nome e cores escolhidos, nasceu glorioso, a 3 de abril de 1953, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro.
O historiador e escritor Haroldo Costa sabe a história do Salgueiro em todos os seus capítulos. É parte de muitos deles. De ver, ouvir, participar. E de contar.
Histórias saborosas, como a da busca desesperada de doações que possibilitassem o desfile, com Mané Macaco e Peru passando o Livro de Ouro até para o presidente Getúlio Vargas (que assinou) e para as mulheres do Mangue, a zona do meretrício (que contribuiriam, desde que a Escola desfilasse para elas).
Compromisso assumido, dinheiro em caixa, no domingo de carnaval, com a desculpa de cortar caminho rumo à Praça Onze, a dupla de sambistas foi conduzindo, por aqui e por ali, os componentes, que, ao perceberem, estavam na Rua Carmo Neto, no coração da zona, com o mulherio aplaudindo e sambando descontraidamente, em “trajes de trabalho”, ou seja, quase nenhum.
Em 1956, o Salgueiro teve seu samba-enredo, “Brasil, Fonte Das Artes”, de Djalma Sabiá, Caxiné e Nilo Moreira, gravado por Emilinha Borba. Era a primeira vez que uma cantora profissional gravava um samba-enredo, que acabou sendo tema musical na recepção à Seleção Brasileira, campeã mundial de futebol em 1958.
No mesmo ano, também pela primeira vez, uma escola de samba gravava um disco, cabendo a honraria ao Salgueiro, pelo selo Todamérica.
“Navio Negreiro” foi o enredo de 1957, com samba de Djalma Sabiá e Amado Régis.
Em 1958, surge o lema salgueirense, “Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente”, abrindo o desfile do enredo “Exaltação aos Fuzileiros Navais”, samba de Djalma Sabiá, com Carivaldo Mota e Graciano Campos.
As inovações começam em 1959, com o casal Marie Louise e Dirceu Nery, responsáveis pelos figurinos sobre Debret, no enredo “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, que rendeu à Escola o segundo lugar.

No ano seguinte, Fernando Pamplona, o figurinista Arlindo Rodrigues (foto) e o aderecista Nilton de Sá completam o chamado quinteto infernal do Salgueiro.
Em 1960, o enredo era “Quilombo dos Palmares”, com samba de Noel Rosa de Oliveira e Nescarzinho. O Salgueiro foi para a avenida como favorito, desfilando de forma a modificar a estética carnavalesca das escolas de samba.
O júri deu-lhe um frustrante terceiro lugar, mas o concurso foi anulado e as cinco primeiras colocadas foram consideradas campeãs. Na garganta dos salgueirenses ficou um gosto de ganhou-mas-não-levou.
Em 1961, com o enredo “Vida e Obra de Aleijadinho”, desfilava pela primeira vez uma jovem de presença marcante, chamada Isabel Valença.
Geraldo Babão fez um grande samba para o carnaval de 1962, intitulado “O Descobrimento Do Brasil”, que ajudou a Escola a chegar perto da vitória, ficando de novo em terceiro lugar.
Mesmo com título dividido em 1960, os salgueirenses consideram que a Escola foi campeã pela primeira vez em 1963, o ano de “Chica da Silva”. O belíssimo samba-enredo de Nescarzinho e Noel Rosa de Oliveira musicou o desfile perfeito.

Haroldo Costa conta: “Quem vinha puxando o samba era o próprio Noel Rosa. A bateria de 200 homens sacudia o povo nas arquibancadas (...) a ala dos importantes representava 12 pares de nobres, dançando uma polca ao ritmo do samba, coreografada por Mercedes Batista (...) O inegável é que o impacto foi irresistível. Não bastasse tudo isso, ainda tinha Paula em momento de esplendor, sacudindo o colo farto, balançando os ombros, o público aplaudindo de pé (...) Casemiro Calça Larga rodopiava seus cento e tantos quilos com a leveza de um menino, orientando alas, apontando passistas como Narcisa, Roxinha e Gargalhada, incentivando as baianas, empurrando a escola para a vitória que se desenhava inteira e total, no impressionante ritmo mantido pela bateria sob o comando de Tião da Alda”.
Isabel Valença era uma rainha na luxuosíssima fantasia de Chica da Silva. Tornou-se símbolo do Salgueiro, que chegou ao título à frente da Mangueira e do Império Serrano.
Virou moda ser salgueirense e, em 1964, o enredo “Chico-Rei” conquistou o segundo lugar.
Em 1965, ano do IV Centenário do Rio de Janeiro, o enredo foi “História do Carnaval Carioca – Eneida”, homenagem à cronista paraense, grande carnavalesca.
O samba de Geraldo Babão, a presença eletrizante das Irmãs Marinho, a majestade de Isabel Valença, o final saudando todas as escolas com suas bandeiras, transformaram-se no segundo campeonato do Salgueiro, que a partir de então foi reconhecido oficialmente como grande escola.
Ela fez outros desfiles sensacionais – “Dona Beja, Feiticeira do Araxá”, “Bahia de Todos os Deuses” e “Rei da França na Ilha da Assombração”, entre outros –, sempre dentro de sua filosofia de não quer ser nem pior, nem melhor: apenas uma escola (e que escola!) diferente.
Desde os primeiros tempos, quando ainda estava pulverizada em três pequenas escolas, o Salgueiro contou com compositores da melhor qualidade. Iniciada por Antenor Gargalhada – que um dia não deixou Noel Rosa sem resposta (Noel fez um samba convidando Mangueira, Favela e Estácio para acordar o Salgueiro. Gargalhada respondeu cantando: “O Salgueiro não está adormecido, /quem é a Vila pra nos acordar?”) – a dinastia teve seguidores, com igual valor e talento, nas várias gerações futuras.
Noel Rosa de Oliveira, Bala (João Nicolau Carneiro Filho), Carivaldo Mota, Nescarzinho do Salgueiro, Djalma Sabiá, Zuzuca, Caxiné, Manoel Rosa e muitos outros, em toda a história da Escola, foram dignos herdeiros de Gargalhada.

Mas nenhum deles como Geraldo Soares Carvalho, o Geraldo Babão. 
Ele nasceu em 1926, no Terreiro Grande, um dos pontos mais conhecidos do Morro do Salgueiro. Tornou-se compositor de melodias inesquecíveis e originais.
Isso por um simples detalhe: enquanto os demais autores compõem seus sambas com harmonia em cavaco ou violão, Geraldo tirava notas musicais da flauta, o que lhe permitia nuances melódicas únicas.
Tocava horas a fio pelas vielas do morro, e a saliva que saía da boca para não machucar os lábios em contato com a flauta lhe rendeu o apelido que o consagraria no carnaval carioca: Geraldo Babão.
O sambista representou para o Salgueiro o unificador que Cartola foi para a Mangueira.  
Em 1953, depois que as três escolas do morro do Salgueiro não obtiveram bom resultado no carnaval, Geraldo Babão, que já pregava a união do trio em apenas uma grande escola, para enfrentar as demais, de igual para igual, desceu o morro cantando um samba feito por ele no ano anterior: “Vamos embalançar a roseira, /Dar um susto na Portela, no Império, na Mangueira. /Se houver opinião, o Salgueiro apresenta / Uma só união”.
Foi a palavra de ordem decisiva para o nascimento dos Acadêmicos do Salgueiro, que deve ainda a Geraldo uma série de lindos sambas, de terreiro e de enredo, como “Vida e Obra de Aleijadinho”, “O Descobrimento do Brasil”, “Chico-Rei” e “História do Carnaval Carioca – Eneida”.
Entre os sambas-enredos, dos muitos maravilhosos do Salgueiro, o justo destaque para “Chica Da Silva” é obrigatório. 
Considerado um dos dez melhores de todos os tempos, foi composto por Nescarzinho do Salgueiro (Anescar Pereira Filho) e Noel Rosa de Oliveira. 
Com ele, Isabel Valença virou mito na fantasia de Chica da Silva e o Salgueiro ganhou seu primeiro título no carnaval carioca.

Uma história que deu samba (12)


“No livro de nossa história / Tem conquistas a valer / Juro que não posso me lembrar / Se for falar da Portela / Hoje não vou terminar” (Monarco).
Todos os portelenses conhecem os versos de Monarco exaltando as conquistas do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela.
No subúrbio de Madureira, qualquer moleque assobia pelas calçadas, enquanto canta mentalmente o samba de Chico Santana, “Portela é despida de vaidade/ Vitória, para Portela, é banalidade”.
E desde há muitos anos, outro velho samba, caído no domínio público, de autor já esquecido, convoca os batuqueiros: “Levanta cedo, trata de te preparar/ Vamos para a Portela/ Que o reino do samba é lá”.
Quando a imponente águia-símbolo da escola azul-e-branco – as cores do manto de N. Sª. da Conceição, sua madrinha – abre as asas sobre a pista do desfile, o sortilégio se refaz a cada ano.
O surdo de marcação bate, a bateria vira, vem a réplica do surdo de resposta e, em alguma nuvem confortável, sisudos senhores se ajeitam e tratam de olhar com atenção (e, obviamente, criticar) o que os meninos de hoje estão fazendo com a brincadeira que eles criaram para animar os domingos de Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro e toda a Madureira.
Na metade dos anos 20, sob uma frondosa mangueira, na Rua Joaquim Teixeira, no subúrbio carioca, três amigos reuniam-se para conversar. O assunto era sempre o mesmo.
Os blocos Quem Fala de Nós Come Mosca e Baianinhas de Oswaldo Cruz, nos quais eles e outros amigos se divertiam, já não existiam mais. O que fazer para solucionar o problema, que afinal era de todos?
Antônio da Silva Caetano, dentre os três, era o mais bem preparado intelectualmente. Cursara o secundário no Colégio Salesiano, onde começou como corneteiro na banda, passou para o saxofone, depois para o pistão, fixando-se no violão.
Seu xará, Antônio Rufino dos Reis, viera de Minas Gerais, já tendo tomado gosto pela dança e pela música. Chegara quase menino ao Rio de Janeiro e, sem estudo, iniciou-se como servente de pedreiro, morando em quarto alugado e tomando refeições, na casa de Paulo da Portela, de quem se fez muito amigo.
Paulo, o mais elegante e falante do trio, lustrador de móveis por profissão e líder nato, era quem mais se preocupava em criar algum tipo de diversão para a turma, órfãos que estavam, sem os blocos carnavalescos.

Paulo, Caetano e Rufino: fundadores da Portela.
A união dos três talentos – a capacidade de idealizar e criar de Caetano, a mineirice de Rufino, responsável pela administração do dinheiro do empreendimento, e a habilidade de Paulo, relações-públicas nato e perfeito, quando ainda não existia a profissão ou o termo – foi o fator que determinou o sucesso da grande ideia: fundar uma escola de samba.
Em 11 de abril de 1926 foi registrado o documento que oficializava o Conjunto Carnavalesco Escola Samba de Oswaldo Cruz, constituído por Paulo da Portela, Antônio da Silva Caetano, Antônio Rufino dos Reis, Álvaro Sales, José da Costa, Galdino, Claudionor, Manoel Bam-Bam-Bam Gonçalves, Antônio Portugal, Cláudio Bernardo da Costa, Angelino Poró Vieira e Candinho, entre outros.
Quando o mangueirense Zé Espinguela, em 1929, promoveu um célebre concurso para escolher “o melhor samba”, o Conjunto de Oswaldo Cruz venceu com uma composição de Heitor dos Prazeres.
A presença dele no grupo incomodava alguns, por ser Heitor “gente nova na escola, vindo do centro da cidade”, e por ter, pouco depois, conseguido mudar o nome da agremiação para Quem Nos Faz É O Capricho.
Em 1930, por causa de uma disputa de autoria, abandonaria o grupo, após ter sido agredido gravemente por Manoel Bam-Bam-Bam, que tomou partido de Rufino, autor de “Vai, Mesmo”, samba do qual Heitor se apossou e gravou.
Mas a futura grande escola ainda dava passos nada largos.
Instalada no nº 412 da Estrada do Portela, não tinha como pagar os aluguéis para o comerciante português Sérgio Hermógenes Alves, considerado pelos veteranos o verdadeiro patrono da Escola. 
Ele gostava tanto do pessoal que “se esquecia” de cobrar, ou então se limitava a receber em serviços: alguém batia bumbo na porta de seu armazém, chamando a freguesia.
Em 1931, já como Vai Como Pode, Rufino contava as dificuldades: “Descemos do trem na Central e fomos desfilando até a Praça Mauá, dali viemos pela Rua Larga (Marechal Floriano) para a Praça Onze. Chegamos às duas e meia da manhã. Demos uma volta e viemos embora para a Central. Aí não cantamos samba, viemos só no assovio e no arrastar da sandália”.

Alcides Dias Lopes, o Malandro Histórico
Paulo da Portela era sempre quem puxava o samba, ajudado por João da Gente e Alcides Lopes, o “Malandro Histórico”.
Até 1935, a Vai Como Pode sempre fez bonito nos desfiles, ganhando naquele ano o primeiro campeonato.
Foi quando, em 1º de março, o delegado Dulcídio Gonçalves se negou a reconhecer a agremiação com “aquele nome chulo” e, de certa forma, impondo, sugeriu que o novo nome acompanhasse o endereço. Surgiu, então, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela.
No ano seguinte, ocorre uma dissidência entre Paulo da Portela e Antônio Caetano, tendo o segundo se afastado da Escola. Mesmo com a forte liderança de Paulo, a Portela se ressentiu da ausência de Caetano e ficou em terceiro lugar.
Em, 1937, ano da eleição de Paulo da Portela como Cidadão Samba do Rio de Janeiro, foi seu título que conseguiu levar a Escola a um vice-campeonato. 
Sem tempo, dinheiro e em crise interna, e Rufino também se desentendendo com Paulo, a Portela mal se armou com o enredo “O Carnaval”, mas a forte presença do Cidadão Samba à frente influiu na decisão dos jurados.
Em 1938, não houve julgamento e, em 1939, a Portela foi campeã com o enredo “Teste do Samba”.

No ano seguinte, ficou em quinto lugar e velhas inimizades determinaram a saída de Paulo da Portela da Escola em 1941.
Ele e Heitor dos Prazeres estavam em São Paulo participando de uma promoção carnavalesca e chegaram, em cima da hora, para desfilar na Portela. Como não estavam vestidos de azul e branco, o mestre-sala Manoel Bam-Bam-Bam, que mantinha a velha rixa com Heitor, proibiu que desfilassem.
Paulo retirou-se e nunca mais voltou à Portela, embora o incidente não impedisse que a Portela fosse campeã.
A escrita de campeã absoluta do carnaval carioca continuou nos sete anos seguintes, vencendo sempre, até ter a hegemonia quebrada pela grande rival vizinha, a Império Serrano, também de Madureira, em 1948.
A Portela se tornara realmente importante. Paulo morreria em 1949, coberto de homenagens pela Escola que fundara.
Natalino José do Nascimento, o lendário Natal da Portela, já era o destacado patrono e iniciava a construção do, talvez, maior patrimônio de todas as escolas de samba.

Inovando sempre, buscando fórmulas para superar as outras escolas, abrigando uma invejável Ala de Compositores – na qual, em breve, despontaria um menino chamado Paulinho da Viola, que se tornaria sinônimo de Portela – a Azul-e-Branco desperta polêmica em 1964, ao abrir o desfile com um grupo de violinistas encasacados, no enredo “O Segundo Casamento de D. Pedro II”.
Em 1966, o próprio Paulinho, na única incursão no gênero, faz o samba-enredo “Memórias de Um Sargento de Milícias” e leva a Escola a ganhar mais um campeonato.
Em 1970, a Portela encerra a década novamente como campeã, a velha águia alçando voo com mais um título, que encerrava um ciclo de vitórias continuadas.

Estamos em um quintal de subúrbio em Madureira. O local é bem espaçoso e algumas árvores oferecem sombra, nas manhãs de domingo, dia da reunião habitual. Aos poucos, os convidados vão chegando e se ajeitando nas mesas e cadeiras.
As roupas, sempre em tons de azul e branco. O cumprimento à dona da casa, Doca, famosa pastora da Portela, é obrigatório. A reunião semanal da Velha Guarda da Portela celebra um rito de preservação cultural.
Monarco fere as cordas do cavaquinho, afinando um clássico ré-sol-si-mi. Casquinha confere o tantã, enquanto Cabelinho aperta as tarraxas do surdo. Argemiro abre a cervejinha para limpar a garganta. Alberto Lonato chega, veteraníssimo, saudando a todos.
Aos poucos, o time está completo, ao redor de mesas sob as árvores. Sempre na companhia de Eunice, Doca já abandonou a cozinha, e assim começa uma verdadeira festa da música popular brasileira.
O “pagode”, como os velhos sambistas sabem (uma reunião de amigos festejando o samba, não um gênero, como se convencionou, recentemente), pega fogo.
O que vale para aqueles senhores, guardiães de uma cultura ameaçada, é a beleza e a qualidade dos sambas que cantam, a maioria da Portela, mas nada impede que Cartola, Silas de Oliveira, Anescar do Salgueiro e Martinho da Vila sejam lembrados.
O timbre agudo da voz das pastoras destaca-se dos graves masculinos. Nos rostos, a alegria de sempre, da celebração da vida, o prazer de exibir talentos na criação de sambas memoráveis, os próprios e os de seus majestosos pares.
Quando alguém lembra Paulinho da Viola, é o paraíso. Foi ele quem resgatou o grupo de veteranos, produziu seu disco, passou a convidá-lo para participar de alguns shows e até para a Europa já o levou.

A foto, de 1970, contém a saudade de alguns integrantes da Velha Guarda da Portela, que já se foram. Feita na ocasião da gravação do disco, quando os ensaios aconteciam na casa de Iara, no subúrbio de Oswaldo Cruz.
Um jovem Paulinho da Viola, à esquerda, observa o grupo. Em pé, ao seu lado: Aniceto, Alberto Lonato, Chico Santana, atrás dele, encoberto, Antônio Caetano, e também Armando Santos, Vicentina (quem já não tinha provado de seu famoso feijão, na Portela?), o sobrinho dela e Manacéa. Agachados estão Casquinha, o neto de Iara, a própria Iara, Monarco, Alcides Lopes (o Malandro Histórico), Cláudio e Miginha.