segunda-feira, 8 de junho de 2015

A gênese da Música Popular Brasileira


A música popular, essa criadora de ídolos da moderna era da cultura de massa, começou a nascer no Brasil há mais de duzentos anos, pela mão de artistas cujo nome, na maioria das vezes, a História esqueceu. Desde os fins do século 17, o poeta satírico Gregório de Mattos Guerra, apelidado “Boca do Inferno”, conquistava (já velhote) muitas mulatinhas do Recôncavo baiano, cantando versos frascários ao som de uma viola de arame por ele mesmo fabricada.

Pouco mais de cinquenta anos depois, em meados do século 18, outro tocador de viola, o poeta carioca Domingos Caldas Barbosa, filho de um português com uma escrava negra de Angola, deixava o Rio de Janeiro e ia lançar na corte de Lisboa umas cantigas repassadas de tal ternura, que os mais conservadores chegavam a temer pela integridade moral das mulheres às quais se dirigiam: “Ora, adeus, Senhora Ulina / diga-me, como passou / conte-me, teve saudades? / Não, não / nem de mim mais se lembrou / Cantou algumas modinhas? / E que modinhas cantou? Lembrou-lhe alguma das minhas? / Não, não, / nem de mim mais se lembrou”.

Seria, porém, a partir da segunda metade do século 19, que a história da música popular iria fixar os primeiros nomes daqueles que ajudam a formar, no Brasil, um dos mais ricos patrimônios de todo o mundo, no campo dos ritmos e das canções. E havia com toda a certeza uma razão para isso. Por oposição à música folclórica (de autor desconhecido e transmitida oralmente de geração a geração), a música popular (composta por autores conhecidos e divulgada por meios gráficos, como as partituras, ou através de gravações de discos, fitas, filmes ou videoteipes) constitui uma criação contemporânea ao aparecimento das cidades com um certo grau de diversificação social.

No Brasil isso equivale a dizer que a música popular aparece nas duas principais cidades coloniais – Salvador e Rio de Janeiro – no correr do século 18, quando o ouro das Minas Gerais desloca o eixo econômico da região Nordeste para o Centro-Sul, e a coexistência desses dois centros administrativos de áreas econômicas distintas torna possível a formação de uma classe média urbana relativamente diferenciada.

Nos primeiros duzentos anos da colonização portuguesa no Brasil, a existência de música popular se tornava impossível desde logo porque não existia povo. Os indígenas, primitivos donos da terra, viviam em estado de nomadismo ou em reduções administradas com caráter de organizações teocrática pelos padres jesuítas. Os negros trazidos da África eram considerados “coisas” e só encontravam relativa representatividade social enquanto membros de irmandades religiosas. E, finalmente, os raros brancos e mestiços livres, empregados nas cidades, constituíam minoria sem expressão, o que os levava ora a identificar-se culturalmente com os negros, ora com os brancos da elite de proprietários – os chamados “bons homens”.


Durante esses dois primeiros séculos de colonização, portanto, os únicos tipos de música ouvidos no Brasil seriam os cantos das danças rituais dos indígenas, acompanhados por instrumentos de sopro (flautas de vários tipos, trombetas, apitos) e por maracás e bate-pés, os batuques dos africanos (na maioria das vezes também rituais, e à base de percussão de tambores, atabaques e marimbas, e ainda de palmas, xequerés e ganzás) e, finalmente, as cantigas dos europeus colonizadores.

Estas eram ainda representadas por gêneros de músicas que remontavam em muitos casos ao tempo de formação dos primeiros burgos medievais, dos séculos 12 ao 14, e que se conheciam como romances, xácaras, coplas e serranilhas. Fora desses tipos de música, só se poderia citar – e já como criações ligadas à arte de elite dos colonizadores – o cantochão das missas e do hinário religioso católico (salmodias cantadas em contraponto) e os toques e fanfarras militares.

Para que pudesse surgir um gênero de música reconhecível como brasileira e popular, seria preciso que a interinfluência de tais elementos musicais chegasse ao ponto de produzir uma resultante. E, principalmente, que se formasse nas cidades um novo público com uma expectativa cultural própria a estimular o aparecimento de artistas capazes de promover essa síntese.

Pois isso só se deu de forma ampla e regular a partir de meados do século 19, quando o povo das principais cidades brasileiras configurou em sua heterogeneidade o que modernamente se chama de massa e passou a exigir um tipo novo de produção cultural, capaz de atender a novas formas de lazer. Essa produção, no setor da música, fez-se representar pelos gêneros da modinha e do lundu, já no campo da dança, pela criação do maxixe, e, no da diversão em geral, pelo aparecimento dos cafés-cantantes, dos teatros de revista e, mais tarde, das casas de chope e dos desfiles de carnaval.

Para que a música estivesse presente em todas essas criações surgidas da necessidade de organização do lazer na vida das cidades, várias gerações de artistas do povo deram a sua contribuição, primeiro ao som da viola, depois nos conjuntos de choro (à base de flauta, cavaquinho e violão) e, por fim, manejando instrumentos sofisticados como o piano, ou primitivos como os pratos raspados com facas dos sambas de partido alto. Graças ao talento inato das grandes massas populares do Brasil, não apenas nas cidades, mas na área rural (a música urbana no Brasil muitas vezes se confunde com a do campo), os nomes desses criadores do povo se contam por milhares até hoje.


Nascido em Salvador (BA), em 1841, e falecido em Caxambu (MG), em 1894, Xisto Bahia foi um deles. Por volta de 1860, quando o jovem filho de um oficial veterano das lutas da Independência e da Cisplatina começou a se tornar conhecido nas rodas boêmias de Salvador sob o estranho nome de Xisto Bahia, as velhas modinhas sentimentais viviam um curioso momento. Divulgada em meados do século 17 em Portugal pelo mulato carioca Domingos Caldas Barbosa, a modinha passara a ser cultivada nos salões por compositores eruditos influenciados pela música italiana.

Assim, já no início do século 19, quando o Príncipe Regente Dom João se transportou com toda a corte portuguesa para o Brasil, as modinhas algo irônicas e espontâneas de Caldas Barbosa tinham se transformado em verdadeiras árias de óperas. Como a produção dessas modinhas se circunscrevia ao meio do Paço e da Capela Real (onde até o padre José Maurício, compositor de missas e de réquiens, não escapava às tentações do gênero profano), as letras de tais canções eram quase sempre escritas por poetas e literatos. Isso tudo contribuía para conferir à modinha uns ares aristocráticos, que chegariam a levar estudiosos como Mário de Andrade a admitir que sua origem fora erudita, e só muito mais tarde o gênero passara ao violão do povo pela mão dos seresteiros e boêmios românticos.

Na verdade, apesar de a modinha ter figurado quase cem anos como a música de salão predileta dos compositores clássicos de Portugal e do Brasil, sua repopularização vinha sendo promovida desde a década de 1830, no Rio de Janeiro, pela primeira geração de poetas do romantismo.

Reunidos na loja do livreiro e editor carioca Paula Brito, no Largo do Rossio Grande (hoje Praça Tiradentes), poetas como Laurindo Rabelo, Gonçalves de Magalhães, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias começaram a escrever versos que eram musicados não mais apenas por músicos de escola, mas por simples tocadores de violão, como o parceiro de Laurindo Rabelo conhecido por Cunha dos Passarinhos. O próprio Paula Brito (que era um mulato de origem modesta e chegara ao nível dos literatos do seu tempo com esforço de autodidata) também compunha modinhas e lundus, chegando a imprimir em suas oficinas a partitura do lundu “A Marrequinha De Iaiá”, com música do Hino Nacional.

Como as principais cidades brasileiras estavam em fase de rápido crescimento, essas produções de poetas e de músicos – de qualquer maneira mais ligados às fontes populares que os das gerações anteriores – ganharam os violões anônimos das ruas, e imediatamente as modinhas entraram a constituir parte obrigatória do repertório de gemido de mestiços de gaforinha partida ao meio.


É por essa época que, na Bahia, aparece o nome do violonista, compositor e depois ator de teatro Xisto Bahia. De saída, sua importância estava em que, sendo um compositor do povo pela origem, sua condição de ator ia levá-lo a atuar no âmbito da classe média: isso o tornaria o intermediário que estava faltando entre os literatos letristas da primeira metade do século 19 e aqueles cantores de rua que dependiam da criação alheia para fazer cair o queixo de seus auditórios de esquina soluçando nos bordões. Embora a bibliografia no que se refere à modinha popular seja muito escassa, a maioria dos depoimentos existentes coincide no reconhecimento dessa importância do ator e compositor baiano.

No mesmo livro em que cita Xisto Bahia como “o maior cantador de modinhas do século passado”, o musicólogo Flausino Rodrigues do Vale lembra que o historiador italiano Vincenzo Cernicchiaro definira o baiano como “espírito de harmoniosa graça, inimitável pela maneira especial com que sabia cantar tanto as próprias modinhas como as de alheio punho”, acrescentando: “E era de ver-se como este músico ingênito, apesar de não conhecer uma nota de música, sabia comover todo um auditório”.

Isso queria dizer que, apesar da condição de representante de camadas mais baixas do povo, Xisto Bahia – tal como mais tarde aconteceria no Rio com Catulo da Paixão Cearense – conseguia superar com a força da sua personalidade a marca de classe, impressionando as camadas médias e a própria elite com a beleza da música e a dignidade dada à interpretação das suas modinhas.

De fato, ao apresentar-se na cidade paulista de Piracicaba, em 1888 – quando já percorria o Brasil como ator consagrado –, Xisto Bahia, apesar de citado pela Gazeta de Piracicaba como o ator que “cantou ao violão as modinhas do capadócio, sendo ruidosamente aplaudido pela plateia” (o que dá a entender, pela escolha do termo “capadócio”, o preconceito do comentarista contra o gênero da música), tem a sua participação pessoal ressalvada pela observação: “Xisto é um cavalheiro extraordinário: reúne ao dom de uma fisionomia, um aspecto singular, e no sexo amável abre uma brecha imensa, como a uma muralha de pedra não o faria a maior artilharia”.

Para o longo processo de retomada da modinha como gênero popular – embora sempre sujeita ao talento individual dos modinheiros, ao contrário das demais canções populares passíveis de interpretação coletiva, como seria mais tarde o caso do samba –, a importância assumida pela figura de Xisto Bahia era fundamental. O fato de Xisto Bahia ter livre trânsito entre os intelectuais, depois que a sua parceria com o maranhense Artur Azevedo tornou-o praticamente coautor da comédia em um ato “Uma Véspera de Reis” (representada pela primeira vez no Teatro São João, na Bahia, a 15 de julho de 1875), ia fazer com que vários poetas baianos se dignassem também a escrever versos especialmente para serem por ele transformados em modinhas populares.

Animados pelo prestígio de Xisto Bahia perante o público dos teatros, figuras da elite como o Visconde de Ouro Preto, o historiador Melo Moraes Filho e o poeta pernambucano Plínio de Lima lançaram-se como autores de modinhas. E em breve os seresteiros podiam contar com modinhas como a famosa “A Casa Branca Da Serra”, que, em 1880, Guimarães Pessoa “compôs e cantou numa memorável noite de boêmio”, segundo afirma o autor baiano Afonso Rui em seu livro “Boêmios e Seresteiros do Passado”.


Quem melhor distinguiu esse traço de ligação estabelecido através de Xisto Bahia entre a segunda geração de poetas românticos e os cantadores de modinhas do povo foi o historiador da música brasileira Guilherme de Melo. Baiano como o próprio Xisto (que conheceu e ouviu cantar na cidade do Salvador), Guilherme de Melo lembra em seu livro “A Música no Brasil”, com toda a exatidão: “O que se dava com relação a Laurindo [Rabelo] no Rio, reproduzia-se na Bahia com Xisto Bahia, ator e aprimorado trovador, que arrebatava auditórios, cantando modinhas próprias ou alheias, interpretando e cantando como artista que era engraçadíssimos lundus, aos repinicados do violão”.

E após salientar que o mais admirável no autor baiano “era a pujança do seu estro musical sem conhecer uma só nota de música”, Guilherme de Melo entrava na análise da modinha “Quis Debalde Varrer-te Da Memória”, anotando: “Não haverá decerto, no mundo, artista nenhum que desdenhe assinar o seu Quis Debalde, uma vez que no gênero ele em nada é inferior aos seus similares. Como o Nel Cor Piú Non Mi Serto, de Paisiello, sobre o qual Beethoven, o mais sublime dos mestres, não desdenhou fazer diversas variações; como o Carnaval De Veneza, que é o canto mais popular do mundo inteiro e que tem servido de tema a centenas de variações de artistas distintos como Liszt, Paganini e outros, como o Ah Che La Morte Ognora, do Trovador de Verdi, que quanto mais cantado mais lindo se torna, assim o Quis Debalde, de Xisto Bahia, sendo uma composição essencialmente pura e bela como as supracitadas, há de atravessar o perpassar dos tempos, conservando sempre o mesmo encanto e a mesma frescura como se fosse escrito na atualidade”.

A importância de Xisto Bahia, porém, não se esgotava nessa criação de modinhas que, apesar da comparação com músicas eruditas europeias, imediatamente se tornavam populares em todo o Brasil. Conforme salienta Afonso Rui no seu livro “Boêmios e Seresteiros do Passado”, “(...) não era Xisto menos inspirado no compor de lundus então em voga como o Isto É Bom Que Dói, O Pescador (com letra de Artur Azevedo), A Mulata e A Preta, esta última ainda ouvida por mim, cantada nesta cidade [da Bahia] num circo de cavalinhos, por Eduardo da Neves”.

A citação, além de valer como um documento do papel de divulgador nacional de músicas populares assumido no início do século 20 pelo palhaço Eduardo das Neves, do Rio de Janeiro, ainda é acrescida por Afonso Rui com esta lembrança reveladora, a propósito de Xisto Bahia: o estribilho do lundu A Preta era, nada mais nada menos, do que o célebre “Laranja, banana, / Maçã, cambucá, / Eu tenho de graça / Que a preta me dá”, tantas vezes aproveitado mais tarde por outros compositores, entre eles o também baiano Dorival Caymmi no seu samba Cais Dourado.

Alguns desses lundus de Xisto Bahia, como o “Isto É Bom”, lançado no teatro de revista (o grande divulgador das músicas populares, antes do disco e do rádio), alcançaram, em pleno sucesso, o início do século 20, com seus estribilhos transformados em músicas de carnaval. Para Xisto Bahia – e até neste ponto ele foi representativo – o sucesso e a fama só não lhe conseguiram dar a fortuna que merecia. E após uma vida inteira de glória e de fama como ator (até o Imperador Dom Pedro II o aplaudiu no espetáculo comemorativo da Batalha do Riachuelo, em 1880), Xisto Bahia foi obrigado a aceitar em 1891 um emprego modesto de funcionário da penitenciária de Niterói. Despedido logo no ano seguinte, quando o presidente do Estado do Rio e seu protetor Francisco Portela é deposto do cargo, Xisto Bahia (já casado e com quatro filhos) entra em depressão, adoece e morre em fins de 1894 na cidade balneária mineira de Caxambu.

O aparecimento de outros gêneros de música popular no início do século, fazendo recuar a modinha e o lundu para a memória dos velhos, ia tornar o nome de Xisto Bahia quase desconhecido das novas gerações. Quando, porém, em 1902, a Casa Edison começou a gravar os primeiros discos (até então a gravação era em cilindros), a música escolhida para inaugurar a série 10 000 das matrizes Zon-o-Phone foi o lundu de Xisto Bahia, “Isto É Bom”, que o cantor Bahiano interpretava com graça, ressaltando a malícia rítmica que envolvia os versos: “O inverno é rigoroso, / Já dizia a minha avó, / Quem dorme junto tem frio / Quanto mais quem dorme só... / Isto é bom, isto é bom / Isto é bom que dói”.


Até meados do século 19, o Brasil não possuía organizações ou grupos musicais que se pudesse chamar de populares. As camadas mais altas cultivavam principalmente a música lírica e podiam dispor das orquestras de teatro ou dos pequenos grupos de câmara que se formavam principalmente no Rio de Janeiro para atender ao refinado entretenimento das elites nos salões. Os escravos divertiam-se com seus batuques, à base de instrumentos de percussão, e os brancos e mestiços das camadas mais baixas – cantando estribilhos ao ritmo de palmas e violas – dançavam fofas, fados, miudinhos e lundus, que não passavam de misturas daqueles batuques de negros com vários gêneros de dança populares portuguesas, espanholas e até francesas (o miudinho surgira do minueto).

Assim, quando, a partir do início do Segundo Reinado, as classes sociais das principais cidades brasileiras começaram a se diversificar, a nascente classe média, não encontrando um tipo de música com que pudesse se identificar (a não ser a modinha e o lundu-canção), teve que importar gênero europeu como a polca, em 1844, e logo depois o schottisch, a quadrilha e a mazurca. Nas fazendas mais importantes, os proprietários organizavam bandas de escravos, e mesmo em cidades como o Rio e Salvador aconteciam de os barbeiros formarem seus conjuntos instrumentais denominados músicas de barbeiro. Mas esses grupos ou tocavam peças clássicas ou músicas importadas da Europa, geralmente para animar festas de adro das igrejas.


É então, pelos meados do século, que aparece no Rio, tocando flauta como nunca se ouvira, o mulatinho filho de um mestre de banda de mesmo nome – Joaquim Antônio da Silva Calado. O flautista Calado Júnior (como foi conhecido até a morte do pai, em 1867), casara-se muito cedo, e ao ficar órfão, com dezenove anos, foi ganhar a vida tocando não apenas peças clássicas, mas músicas dançantes, em bailes de casas de família e festinhas de casamento e batizado.

Ora, como nos ambientes acanhados das salas de visitas não cabia o instrumental das bandas, essa música doméstica geralmente era fornecida apenas por tocadores de violão e de cavaquinho. Segundo afirmação do maestro Baptista de Siqueira em seu livro intitulado “Vultos Históricos da Música Brasileira”, “esses artistas aprendiam uma polca de ouvido e a executavam para que os violonistas se adestrassem nas passagens modulantes, transformando os exercícios em agradáveis passatempos”.

A Calado ia caber exatamente o papel da flauta nesses conjuntos, criando o primeiro grupo instrumental de caráter absolutamente popular e brasileiro, e cuja forma chorada de execução ia conferir ao estilo e aos grupos de músicos o nome de choro. Explicando essa criação do ponto de vista musical, o maestro Baptista de Siqueira, referindo-se ao grupo de Calado, escreveu que “constava ele, desde sua origem, de um instrumento solista, dois violões e um cavaquinho, onde somente um dos componentes sabia ler a música escrita: todos os demais deviam ser improvisadores do acompanhamento harmônico”.

O resultado da música produzida por esses conjuntos de choro, à base de modulações, era a criação de melodias tão trabalhadas que os editores as julgavam avançadas demais e, temendo fracasso de venda, obrigaram Calado a imprimir suas primeiras obras por conta própria, como aconteceu com as polcas “Querida Por Todos” (dedicada à sua companheira de choro Chiquinha Gonzaga), “A Sedutora” e “Linguagem Do Coração”.

E os editores não deixavam de ter alguma razão porque, segundo ainda observação de Baptista de Siqueira, já nessas polcas aparecia “uma espécie de introdução servido de estribilho permanente a duas estrofes que se sucedem em alternativas na execução”. Essa característica iria servir de base, menos de dez anos depois, para a criação de um gênero novo de música dançante, de par enlaçado, genuinamente brasileira e popular: o maxixe. O reconhecimento da importância de Calado no meio dos próprios chorões, entretanto, foi desde logo muito grande, e pode ser medido hoje pelo levantamento da influência claramente exercida pelo flautista sobre os músicos populares da sua geração.

“O grande flautista”, escreveu a pioneira da pesquisa de música brasileira Marisa Lira num artigo sobre Calado, “criou escola, contaminando os executores da época com suas interpretações originais. Lançou, já não há mais dúvida, as bases da nacionalização da música popular brasileira.” E explicando a ação de Calado como animador da formação de grupos de choro, acrescentou: “Foi seu acompanhador predileto o Saturnino, uma pardo magrinho que tocava violão admiravelmente. Seus companheiros de choro: Viriato Figueira, Chiquinha Gonzaga, o Silveira, o Luisinho flautista, Rangel, Baziza, Ismael Correia, Zequinha, Leal Careca e mais alguns”.

Ao lado dessa posição de destaque na área popular, Calado alcançaria em 1871 a honra de tornar-se o terceiro professor da cadeira de flauta do Conservatório Nacional de Música, o que lhe permitiria receber de Dom Pedro II, em 1879, juntamente com os demais professores daquela instituição, a Ordem da Rosa, no grau de comendador. A honraria, no entanto, como no caso de tantos outros compositores brasileiros, não o impedia de ter que continuar a tocar como músico profissional em bailes e festas para ganhar a vida.

E foi assim que, logo após o carnaval de 1880, quando ainda tocou flauta como componente de orquestra de bailes de teatro, o Comendador Joaquim Antônio da Silva Calado caiu de febre por conta de uma epidemia que grassava no Rio de Janeiro e morreu em março, sendo enterrado no cemitério de São João Batista “com pequeno acompanhamento de amigos” – conforme esclarece seu biógrafo Baptista de Siqueira –, “por haver sucumbido de doença contagiosa e estar sendo proibido qualquer tipo de aglomeração humana”.


Com a morte de Calado, a música brasileira teria que esperar alguns anos até o aparecimento de outro flautista à altura de sua arte (seria Patápio Silva, nascido na vila de Itaocara, no Estado do Rio de Janeiro, a 22 de outubro de 1881), mas as suas composições nunca chegaram a ser esquecidas. No início do século 20, mais de vinte anos depois do desaparecimento do flautista, o pernóstico poeta Catulo da Paixão Cearense resolveu tomar como um desafio as dificuldades musicais da última composição de Calado, a polca “Flor Amorosa”, e transformou-a em canção, colocando-lhe os versos que lhe garantiram a sobrevivência na memória popular: “Flor amorosa, compassiva, sensitiva...”

A partir de 1902 começavam a ser gravados discos de gramofone, e o teatro de revista, que vinha crescendo desde fins do século 19, cada vez mais pedia músicos para animar os quadros musicados das peças alusivas a temas da atualidade. Entre esses muitos músicos de choro, que chegaram a ver perpetuadas em discos algumas das melhores provas do seu talento, estava Pedro Galdino, operário de uma fábrica de tecidos do bairro carioca de Vila Isabel.


Nascido na segunda metade do século 19, Pedro Galdino – preto de origem popular urbana inequívoca, como revela sua condição de operário têxtil – aprendeu a tocar flauta no auge da influência de Calado, o que significa dizer que era um virtuosista, preocupar em dificultar nos solos o acompanhamento improvisado dos violões e do cavaquinho.

Os dados pessoais sobre Pedro Galdino são muitos poucos. Ary Vasconcelos afirma em seu livro “Panorama da Música Popular Brasileira” que ele foi mestre da banda da Fábrica Confiança de Tecidos, de Vila Isabel, e que vinha de uma família de músicos. Mas as poucas músicas que chegou a deixar gravadas em discos da Casa Faulhaber explicam perfeitamente a razão do seu prestígio entre os chorões cariocas dos primeiros vinte anos do século 20.

Ary Vasconcelos aponta como a mais famosa das composições de Pedro Galdino a música “Meu Pensamento”, transformada, depois de receber letra de Tuttemberg Cruz, na canção “Olhos De Veludo”. Em discos Faulhaber, porém, Pedro Galdino gravou schottisches como “Adélia”, valsas como “Pastorinha” e polcas como “Flausina” e a célebre “Jocosa”, que serve como o mais perfeito exemplo não apenas da inspiração de Pedro Galdino, mas do próprio espírito do choro, como forma de tocar.


Um pouco mais novo do que Pedro Galdino, o pistonista Paulino do Sacramento (1880-1926), também músico de banda, alcançaria um degrau a mais na carreira: além de conseguir gravar algumas de suas músicas, pôde atingir o estágio de profissionalização, tornando-se maestro de orquestra do teatro de revista carioca. Contemporâneo e companheiro do maestro Francisco Braga no Colégio dos Meninos Desvalidos, em cuja banda tocaram juntos, o início da carreira do jovem Paulino do Sacramento ia ficar ligado ao do grande maestro: quando Braga, já regente da banda do colégio, ganhou uma bolsa para especializar-se em teoria em Paris, foi Paulino o indicado para substituí-lo.

Como o teatro de revista estava, no início do século 20, precisando de músicos capazes de escrever na pauta (a falta de maestros brasileiros obrigava o teatro musicado a servir-se de estrangeiros como o português Gomes Cardim e o espanhol Júlio Cristóbal), o ex-menino desvalido Paulino do Sacramento pôde transferir-se para as orquestras de poço de teatro. A partir da revista “O Rio Civiliza-se”, em 1912 (ao que tudo indica sua primeira contribuição para o teatro musicado), o nome de Paulino do Sacramento não deixa mais de figurar nos cartazes da Praça Tiradentes, produzindo partituras para revistas, operetas e burletas até 1926, quando morre a 9 de março.

O ano da morte de Paulino Sacramento marcou, por coincidência, o momento de glória de outro músico de orquestra de teatro de revista, seu contemporâneo: o maestro Pedro de Sá Pereira. Temperamento romântico (era, como seu 1,60 m de altura, muito tímido e franzino), Pedro de Sá Pereira especializara-se no gênero que a partir da década de 20 se convencionara chamar de canção sertaneja.


A influência da poesia de Catulo da Paixão Cearense chegara também ao teatro de revista, onde as figuras idealizadas dos caboclos começavam a queixar-se do desprezo das morenas com uma insistência que contaminou irremediavelmente a música popular brasileira seguramente até a década de 40 (ou até hoje, se for bem observado o repertório da música sertaneja).

Pois foi ao compor uma dessas canções para a revista “Comidas, Meu Santo!”, estreada no Teatro São José a 1.º de setembro pela companhia da atriz Margarida Max, que Sá Pereira ia conseguir lançar o seu nome muito além dos palcos do teatro musicado. A “canção-modinha” (como dizia a partitura), cantada na revista pelo barítono Roberto Vilmar, foi a célebre “Chuá, Chuá”, cuja letra era do revistógrafo Ari Pavão, e que ainda hoje é lembrada pelo seu estribilho: “E a fonte a cantá / Chuá, chuá... / E as águas a corrê... / Chuê, chuê...”

Quando, a partir da década de 30, uma profusão de sambas e de marchas invadiu o teatro de revista com Sinhô e toda uma geração de compositores das camadas mais populares do Rio, Sá Pereira – silenciosamente, como era do seu feitio – retirou-se com o repertório das suas canções debaixo do braço e foi tocar o seu “Chuá, Chuá” para os passageiros dos navios da Companhia de Navegação Costeira, como pianista de bordo.

A partir dos últimos anos do século 19, as principais cidades brasileiras assistiram ao despertar da consciência das camadas mais humildes da sociedade. Inferiorizados até 1888 pela existência da escravidão, os trabalhadores livres da era republicana começaram a disputar um lugar na sociedade, o que, no campo do lazer, se evidenciou por uma crescente participação na festa do carnaval, transformada pela classe média numa imitação da brincadeira europeia, à base de desfiles de carros alegóricos, corsos e batalha de flores.


Os integrantes dessas populações predominantemente negras e mestiças mais integradas na estrutura econômica das cidades, como os empregados de fábricas e pequenos burocratas, organizaram-se principalmente no Rio de Janeiro em sociedades recreativas denominada ranchos, e passaram a sair no carnaval produzindo um tipo de música orquestral que acabaria fazendo nascer as marchas de rancho – e, em decorrência delas, as marchas-ranchos.

Os mais pobres, porém, onde a cor negra predominava (era o mestiço que invariavelmente galgava os primeiros degraus da escala social), continuaram a exercitar-se nos seus batuques e rodas de pernadas ou de capoeira (nome preferido na Bahia). Essa parte da população não saía no carnaval de forma organizada, mas em cordões desordenados, cujos desfiles terminavam quase sempre numa esfuziante coreografia de rabos-de-arraia e em coloridas cenas de sangue.

No entanto, ia ser da música à base de percussão produzida por esses negros com o nome de “batucada” que ia nascer o gênero popular mais nacionalmente representativo da música brasileira: o samba. Três dos mais velhos representantes dessa fase seriam Caninha, João da Baiana e Donga, dos quais os dois últimos ainda chegaram a década de 70 do século 20, não apenas como sobreviventes de uma era extinta, mas continuando a demonstrar a validade da sua arte em espetáculo evocativamente denominados da “velha guarda”.

O mais antigo, José Luís de Morais, o Caninha (1883-1961), chamado em criança de Caninha Doce (porque vendia roletes de cana na zona da estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro), aprendeu a música dos negros durante as batucadas realizadas na Festa da Penha. E em 1932 – quando essa população de descendentes de escravos foi obrigada a morar em casebres no alto dos morros do Rio de Janeiro – compôs o samba que valia por uma aula de história da música popular: “Samba do morro/ Não é samba, é batucada/ É batucada/ É batucada.../ Cá na cidade/ A escola é diferente/ Só tira samba/ Malandro que tem patente”.

De fato, quando Donga, o mais novo desses três pioneiros, realiza em 1917, sob o nome de samba, o arranjo de motivos populares que intitulou “Pelo Telefone” sua primeira providência é registrar música e letra na Biblioteca Nacional – o que equivalia mesmo a tirar patente. A atitude de Donga (Ernesto dos Santos, Rio, 1871-1974) significa que, coincidindo com o aparecimento do samba, a música popular, como criação destinada ao entretenimento da massa, tinha atingindo o estágio de produto comercial capaz de ser vendido e de gerar lucros. O crescimento da indústria do disco, e logo o aparecimento do rádio, seguidos mais tarde do cinema e da televisão, provaram que Donga tinha sido um pioneiro esperto ao correr à repartição oficial para “tirar patente”.

Mas o exemplo de vida do mais velho sobrevivente da geração que criou o samba a partir da batucada, João Machado Guedes (chamado João da Baiana porque era filho da baiana Perciliana de Santo Amaro), veio mostrar que essa esperteza ia valer para todos, menos para os que criaram o próprio samba. Donga viveu seus últimos anos como funcionário aposentado da Justiça, doente e quase cego, num subúrbio do Rio de Janeiro. João da Baiana, com 85, acabou por ser recolhido à Casa dos Artistas de Jacarepaguá, na zona rural carioca, passando o fim dos seus dias de uma forma não muito diferente daquela que descreveu com bom humor no seu samba de maior sucesso, o “Cabide De Molambo”, de 1932: “Mas hoje eu ando / Com o sapato furado...”


Uma das mais completas figuras de criador das camadas populares foi o tocador de cavaquinho, ritmista, compositor e pintor carioca Heitor dos Prazeres. Filho de descendentes de baianos da Cidade Nova, no Rio de Janeiro (o pai era o clarinetista Eduardo Prazeres, da Banda Policial, a mãe, a costureira Celestina), Heitor surgiu para a pintura e a música ainda na infância, dividido entre os desenhos da Cartilha de Felisberto de Carvalho (que coloria com lápis) e o cavaquinho do tio, que ele tirava às escondidas do prego que o prendia à parede. Na sala – lembrou mais tarde em seu depoimento no Museu da Imagem e do Som da Guanabara o próprio Heitor – havia também um piano, mas esse só era aberto nos dias de festas e aos sábados, para limpeza.

Após uma infância típica de menino das classes populares do Rio do início do século (nasceu perto da Praça Onze de Junho a 23 de setembro de 1898), passou por várias escolas, sempre expulso, foi preso por vadiagem aos treze anos e, “aprendiz de tudo”, trabalhou como tipógrafo, sapateiro e marceneiro, tornando-se mestre nesta profissão. Quando podia largar a pua, Heitor pegava o cavaquinho e com outros rapazolas do seu tempo – entre os quais Donga e Caninha – ia apreciar os sambas na casa da baiana Tia Ciata, onde o maioral era o baiano criador dos primitivos ranchos cariocas, Hilário Jovino Ferreira. Integrado nesse meio de tiradores de samba de partido alto, Heitor (conhecido por Mano Lino, nas rodas de sambistas) saía de baiana no carnaval tocando seu cavaquinho, e em 1932 já firmava seu nome, vencendo, com o samba “Mulher De Malandro”.

Quatro anos depois, quando morre sua primeira mulher, Mano Lino escreve uns versos sobre um pierrô apaixonado, que vivia só cantando, e de um encontro com Noel Rosa sob os Arcos, perto da Lapa, nasce o seu primeiro grande sucesso nacional: a marcha “Pierrô Apaixonado”. É então que Heitor começa a fazer desenhos para ilustrar as partituras de suas músicas, lançando-se a experiências com pintura a óleo em 1936. Em menos de dez anos teria a honra de ver um dos seus quadros incluído na mostra de arte brasileira em Londres, para vender em benefícios da Royal Air Force. Era a tela Festa de São João, diante da qual a Rainha Elizabeth perguntou: “Quem é esse pintor extraordinário?”


Premiado na I Bienal de São Paulo em 1951 com seu quadro Moenda, o sambista-pintor (a esta altura contínuo do Ministério da Educação, por influência do poeta Carlos Drummond de Andrade), ainda tinha tempo para assinar o ponto na Rádio Nacional – cujo coro dirigia havia vinte anos – e para apresentar-se em shows com seu grupo de mulatas passistas intitulado Heitor e Sua Gente. Foi assim que a morte por câncer o encontrou no primeiro minuto da madrugada de 4 de outubro de 1964, atirado afinal, depois de uma vida de cores ritmo e poesia – como ele mesmo definiu – “sobre um leito branco como uma negra bandeira”.