A música popular, essa criadora de ídolos da moderna era da
cultura de massa, começou a nascer no Brasil há mais de duzentos anos, pela mão
de artistas cujo nome, na maioria das vezes, a História esqueceu. Desde os fins
do século 17, o poeta satírico Gregório de Mattos Guerra, apelidado “Boca do
Inferno”, conquistava (já velhote) muitas mulatinhas do Recôncavo baiano,
cantando versos frascários ao som de uma viola de arame por ele mesmo
fabricada.
Pouco mais de cinquenta anos depois, em meados do século 18,
outro tocador de viola, o poeta carioca Domingos Caldas Barbosa, filho de um
português com uma escrava negra de Angola, deixava o Rio de Janeiro e ia lançar
na corte de Lisboa umas cantigas repassadas de tal ternura, que os mais
conservadores chegavam a temer pela integridade moral das mulheres às quais se
dirigiam: “Ora, adeus, Senhora Ulina / diga-me, como passou / conte-me, teve
saudades? / Não, não / nem de mim mais se lembrou / Cantou algumas modinhas? /
E que modinhas cantou? Lembrou-lhe alguma das minhas? / Não, não, / nem de mim
mais se lembrou”.
Seria, porém, a partir da segunda metade do século 19, que a
história da música popular iria fixar os primeiros nomes daqueles que ajudam a
formar, no Brasil, um dos mais ricos patrimônios de todo o mundo, no campo dos
ritmos e das canções. E havia com toda a certeza uma razão para isso. Por
oposição à música folclórica (de autor desconhecido e transmitida oralmente de
geração a geração), a música popular (composta por autores conhecidos e
divulgada por meios gráficos, como as partituras, ou através de gravações de
discos, fitas, filmes ou videoteipes) constitui uma criação contemporânea ao
aparecimento das cidades com um certo grau de diversificação social.
No Brasil isso equivale a dizer que a música popular aparece
nas duas principais cidades coloniais – Salvador e Rio de Janeiro – no correr
do século 18, quando o ouro das Minas Gerais desloca o eixo econômico da região
Nordeste para o Centro-Sul, e a coexistência desses dois centros
administrativos de áreas econômicas distintas torna possível a formação de uma
classe média urbana relativamente diferenciada.
Nos primeiros duzentos anos da colonização portuguesa no
Brasil, a existência de música popular se tornava impossível desde logo porque
não existia povo. Os indígenas, primitivos donos da terra, viviam em estado de
nomadismo ou em reduções administradas com caráter de organizações teocrática
pelos padres jesuítas. Os negros trazidos da África eram considerados “coisas”
e só encontravam relativa representatividade social enquanto membros de
irmandades religiosas. E, finalmente, os raros brancos e mestiços livres,
empregados nas cidades, constituíam minoria sem expressão, o que os levava ora
a identificar-se culturalmente com os negros, ora com os brancos da elite de proprietários
– os chamados “bons homens”.
Durante esses dois primeiros séculos de colonização,
portanto, os únicos tipos de música ouvidos no Brasil seriam os cantos das
danças rituais dos indígenas, acompanhados por instrumentos de sopro (flautas
de vários tipos, trombetas, apitos) e por maracás e bate-pés, os batuques dos
africanos (na maioria das vezes também rituais, e à base de percussão de
tambores, atabaques e marimbas, e ainda de palmas, xequerés e ganzás) e,
finalmente, as cantigas dos europeus colonizadores.
Estas eram ainda representadas por gêneros de músicas que
remontavam em muitos casos ao tempo de formação dos primeiros burgos medievais,
dos séculos 12 ao 14, e que se conheciam como romances, xácaras, coplas e
serranilhas. Fora desses tipos de música, só se poderia citar – e já como
criações ligadas à arte de elite dos colonizadores – o cantochão das missas e
do hinário religioso católico (salmodias cantadas em contraponto) e os toques e
fanfarras militares.
Para que pudesse surgir um gênero de música reconhecível
como brasileira e popular, seria preciso que a interinfluência de tais
elementos musicais chegasse ao ponto de produzir uma resultante. E,
principalmente, que se formasse nas cidades um novo público com uma expectativa
cultural própria a estimular o aparecimento de artistas capazes de promover
essa síntese.
Pois isso só se deu de forma ampla e regular a partir de
meados do século 19, quando o povo das principais cidades brasileiras
configurou em sua heterogeneidade o que modernamente se chama de massa e passou
a exigir um tipo novo de produção cultural, capaz de atender a novas formas de
lazer. Essa produção, no setor da música, fez-se representar pelos gêneros da
modinha e do lundu, já no campo da dança, pela criação do maxixe, e, no da
diversão em geral, pelo aparecimento dos cafés-cantantes, dos teatros de
revista e, mais tarde, das casas de chope e dos desfiles de carnaval.
Para que a música estivesse presente em todas essas criações
surgidas da necessidade de organização do lazer na vida das cidades, várias
gerações de artistas do povo deram a sua contribuição, primeiro ao som da
viola, depois nos conjuntos de choro (à base de flauta, cavaquinho e violão) e,
por fim, manejando instrumentos sofisticados como o piano, ou primitivos como
os pratos raspados com facas dos sambas de partido alto. Graças ao talento
inato das grandes massas populares do Brasil, não apenas nas cidades, mas na
área rural (a música urbana no Brasil muitas vezes se confunde com a do campo),
os nomes desses criadores do povo se contam por milhares até hoje.
Nascido em Salvador (BA), em 1841, e falecido em Caxambu
(MG), em 1894, Xisto Bahia foi um deles. Por volta de 1860, quando o jovem
filho de um oficial veterano das lutas da Independência e da Cisplatina começou
a se tornar conhecido nas rodas boêmias de Salvador sob o estranho nome de
Xisto Bahia, as velhas modinhas sentimentais viviam um curioso momento.
Divulgada em meados do século 17 em Portugal pelo mulato carioca Domingos
Caldas Barbosa, a modinha passara a ser cultivada nos salões por compositores
eruditos influenciados pela música italiana.
Assim, já no início do século 19, quando o Príncipe Regente
Dom João se transportou com toda a corte portuguesa para o Brasil, as modinhas
algo irônicas e espontâneas de Caldas Barbosa tinham se transformado em
verdadeiras árias de óperas. Como a produção dessas modinhas se circunscrevia
ao meio do Paço e da Capela Real (onde até o padre José Maurício, compositor de
missas e de réquiens, não escapava às tentações do gênero profano), as letras
de tais canções eram quase sempre escritas por poetas e literatos. Isso tudo
contribuía para conferir à modinha uns ares aristocráticos, que chegariam a
levar estudiosos como Mário de Andrade a admitir que sua origem fora erudita, e
só muito mais tarde o gênero passara ao violão do povo pela mão dos seresteiros
e boêmios românticos.
Na verdade, apesar de a modinha ter figurado quase cem anos
como a música de salão predileta dos compositores clássicos de Portugal e do
Brasil, sua repopularização vinha sendo promovida desde a década de 1830, no
Rio de Janeiro, pela primeira geração de poetas do romantismo.
Reunidos na loja do livreiro e editor carioca Paula Brito,
no Largo do Rossio Grande (hoje Praça Tiradentes), poetas como Laurindo Rabelo,
Gonçalves de Magalhães, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias começaram a escrever
versos que eram musicados não mais apenas por músicos de escola, mas por
simples tocadores de violão, como o parceiro de Laurindo Rabelo conhecido por
Cunha dos Passarinhos. O próprio Paula Brito (que era um mulato de origem
modesta e chegara ao nível dos literatos do seu tempo com esforço de
autodidata) também compunha modinhas e lundus, chegando a imprimir em suas
oficinas a partitura do lundu “A Marrequinha De Iaiá”, com música do Hino
Nacional.
Como as principais cidades brasileiras estavam em fase de
rápido crescimento, essas produções de poetas e de músicos – de qualquer
maneira mais ligados às fontes populares que os das gerações anteriores –
ganharam os violões anônimos das ruas, e imediatamente as modinhas entraram a
constituir parte obrigatória do repertório de gemido de mestiços de gaforinha
partida ao meio.
É por essa época que, na Bahia, aparece o nome do
violonista, compositor e depois ator de teatro Xisto Bahia. De saída, sua
importância estava em que, sendo um compositor do povo pela origem, sua
condição de ator ia levá-lo a atuar no âmbito da classe média: isso o tornaria
o intermediário que estava faltando entre os literatos letristas da primeira metade
do século 19 e aqueles cantores de rua que dependiam da criação alheia para
fazer cair o queixo de seus auditórios de esquina soluçando nos bordões. Embora
a bibliografia no que se refere à modinha popular seja muito escassa, a maioria
dos depoimentos existentes coincide no reconhecimento dessa importância do ator
e compositor baiano.
No mesmo livro em que cita Xisto Bahia como “o maior
cantador de modinhas do século passado”, o musicólogo Flausino Rodrigues do
Vale lembra que o historiador italiano Vincenzo Cernicchiaro definira o baiano
como “espírito de harmoniosa graça, inimitável pela maneira especial com que
sabia cantar tanto as próprias modinhas como as de alheio punho”,
acrescentando: “E era de ver-se como este músico ingênito, apesar de não
conhecer uma nota de música, sabia comover todo um auditório”.
Isso queria dizer que, apesar da condição de representante
de camadas mais baixas do povo, Xisto Bahia – tal como mais tarde aconteceria
no Rio com Catulo da Paixão Cearense – conseguia superar com a força da sua
personalidade a marca de classe, impressionando as camadas médias e a própria
elite com a beleza da música e a dignidade dada à interpretação das suas
modinhas.
De fato, ao apresentar-se na cidade paulista de Piracicaba,
em 1888 – quando já percorria o Brasil como ator consagrado –, Xisto Bahia,
apesar de citado pela Gazeta de Piracicaba como o ator que “cantou ao violão as
modinhas do capadócio, sendo ruidosamente aplaudido pela plateia” (o que dá a
entender, pela escolha do termo “capadócio”, o preconceito do comentarista
contra o gênero da música), tem a sua participação pessoal ressalvada pela
observação: “Xisto é um cavalheiro extraordinário: reúne ao dom de uma
fisionomia, um aspecto singular, e no sexo amável abre uma brecha imensa, como
a uma muralha de pedra não o faria a maior artilharia”.
Para o longo processo de retomada da modinha como gênero
popular – embora sempre sujeita ao talento individual dos modinheiros, ao
contrário das demais canções populares passíveis de interpretação coletiva,
como seria mais tarde o caso do samba –, a importância assumida pela figura de
Xisto Bahia era fundamental. O fato de Xisto Bahia ter livre trânsito entre os
intelectuais, depois que a sua parceria com o maranhense Artur Azevedo tornou-o
praticamente coautor da comédia em um ato “Uma Véspera de Reis” (representada
pela primeira vez no Teatro São João, na Bahia, a 15 de julho de 1875), ia
fazer com que vários poetas baianos se dignassem também a escrever versos
especialmente para serem por ele transformados em modinhas populares.
Animados pelo prestígio de Xisto Bahia perante o público dos
teatros, figuras da elite como o Visconde de Ouro Preto, o historiador Melo
Moraes Filho e o poeta pernambucano Plínio de Lima lançaram-se como autores de
modinhas. E em breve os seresteiros podiam contar com modinhas como a famosa “A
Casa Branca Da Serra”, que, em 1880, Guimarães Pessoa “compôs e cantou numa
memorável noite de boêmio”, segundo afirma o autor baiano Afonso Rui em seu
livro “Boêmios e Seresteiros do Passado”.
Quem melhor distinguiu esse traço de ligação estabelecido
através de Xisto Bahia entre a segunda geração de poetas românticos e os
cantadores de modinhas do povo foi o historiador da música brasileira Guilherme
de Melo. Baiano como o próprio Xisto (que conheceu e ouviu cantar na cidade do
Salvador), Guilherme de Melo lembra em seu livro “A Música no Brasil”, com toda
a exatidão: “O que se dava com relação a Laurindo [Rabelo] no Rio,
reproduzia-se na Bahia com Xisto Bahia, ator e aprimorado trovador, que
arrebatava auditórios, cantando modinhas próprias ou alheias, interpretando e
cantando como artista que era engraçadíssimos lundus, aos repinicados do
violão”.
E após salientar que o mais admirável no autor baiano “era a
pujança do seu estro musical sem conhecer uma só nota de música”, Guilherme de
Melo entrava na análise da modinha “Quis Debalde Varrer-te Da Memória”,
anotando: “Não haverá decerto, no mundo, artista nenhum que desdenhe assinar o
seu Quis Debalde, uma vez que no
gênero ele em nada é inferior aos seus similares. Como o Nel Cor Piú Non Mi Serto, de Paisiello, sobre o qual Beethoven, o
mais sublime dos mestres, não desdenhou fazer diversas variações; como o Carnaval De Veneza, que é o canto mais
popular do mundo inteiro e que tem servido de tema a centenas de variações de
artistas distintos como Liszt, Paganini e outros, como o Ah Che La Morte Ognora, do Trovador
de Verdi, que quanto mais cantado mais lindo se torna, assim o Quis Debalde, de
Xisto Bahia, sendo uma composição essencialmente pura e bela como as
supracitadas, há de atravessar o perpassar dos tempos, conservando sempre o
mesmo encanto e a mesma frescura como se fosse escrito na atualidade”.
A importância de Xisto Bahia, porém, não se esgotava nessa
criação de modinhas que, apesar da comparação com músicas eruditas europeias,
imediatamente se tornavam populares em todo o Brasil. Conforme salienta Afonso
Rui no seu livro “Boêmios e Seresteiros do Passado”, “(...) não era Xisto menos
inspirado no compor de lundus então em voga como o Isto É Bom Que Dói, O
Pescador (com letra de Artur Azevedo), A
Mulata e A Preta, esta última
ainda ouvida por mim, cantada nesta cidade [da Bahia] num circo de cavalinhos,
por Eduardo da Neves”.
A citação, além de valer como um documento do papel de
divulgador nacional de músicas populares assumido no início do século 20 pelo
palhaço Eduardo das Neves, do Rio de Janeiro, ainda é acrescida por Afonso Rui
com esta lembrança reveladora, a propósito de Xisto Bahia: o estribilho do
lundu A Preta era, nada mais nada
menos, do que o célebre “Laranja, banana, / Maçã, cambucá, / Eu tenho de graça
/ Que a preta me dá”, tantas vezes aproveitado mais tarde por outros
compositores, entre eles o também baiano Dorival Caymmi no seu samba Cais Dourado.
Alguns desses lundus de Xisto Bahia, como o “Isto É Bom”,
lançado no teatro de revista (o grande divulgador das músicas populares, antes
do disco e do rádio), alcançaram, em pleno sucesso, o início do século 20, com
seus estribilhos transformados em músicas de carnaval. Para Xisto Bahia – e até
neste ponto ele foi representativo – o sucesso e a fama só não lhe conseguiram
dar a fortuna que merecia. E após uma vida inteira de glória e de fama como
ator (até o Imperador Dom Pedro II o aplaudiu no espetáculo comemorativo da Batalha
do Riachuelo, em 1880), Xisto Bahia foi obrigado a aceitar em 1891 um emprego
modesto de funcionário da penitenciária de Niterói. Despedido logo no ano
seguinte, quando o presidente do Estado do Rio e seu protetor Francisco Portela
é deposto do cargo, Xisto Bahia (já casado e com quatro filhos) entra em
depressão, adoece e morre em fins de 1894 na cidade balneária mineira de
Caxambu.
O aparecimento de outros gêneros de música popular no início
do século, fazendo recuar a modinha e o lundu para a memória dos velhos, ia
tornar o nome de Xisto Bahia quase desconhecido das novas gerações. Quando,
porém, em 1902, a Casa Edison começou a gravar os primeiros discos (até então a
gravação era em cilindros), a música escolhida para inaugurar a série 10 000 das
matrizes Zon-o-Phone foi o lundu de Xisto Bahia, “Isto É Bom”, que o cantor
Bahiano interpretava com graça, ressaltando a malícia rítmica que envolvia os
versos: “O inverno é rigoroso, / Já dizia a minha avó, / Quem dorme junto tem
frio / Quanto mais quem dorme só... / Isto é bom, isto é bom / Isto é bom que
dói”.
Até meados do século 19, o Brasil não possuía organizações
ou grupos musicais que se pudesse chamar de populares. As camadas mais altas
cultivavam principalmente a música lírica e podiam dispor das orquestras de
teatro ou dos pequenos grupos de câmara que se formavam principalmente no Rio
de Janeiro para atender ao refinado entretenimento das elites nos salões. Os
escravos divertiam-se com seus batuques, à base de instrumentos de percussão, e
os brancos e mestiços das camadas mais baixas – cantando estribilhos ao ritmo
de palmas e violas – dançavam fofas, fados, miudinhos e lundus, que não
passavam de misturas daqueles batuques de negros com vários gêneros de dança
populares portuguesas, espanholas e até francesas (o miudinho surgira do
minueto).
Assim, quando, a partir do início do Segundo Reinado, as
classes sociais das principais cidades brasileiras começaram a se diversificar,
a nascente classe média, não encontrando um tipo de música com que pudesse se
identificar (a não ser a modinha e o lundu-canção), teve que importar gênero
europeu como a polca, em 1844, e logo depois o schottisch, a quadrilha e a
mazurca. Nas fazendas mais importantes, os proprietários organizavam bandas de
escravos, e mesmo em cidades como o Rio e Salvador aconteciam de os barbeiros
formarem seus conjuntos instrumentais denominados músicas de barbeiro. Mas
esses grupos ou tocavam peças clássicas ou músicas importadas da Europa,
geralmente para animar festas de adro das igrejas.
É então, pelos meados do século, que aparece no Rio, tocando
flauta como nunca se ouvira, o mulatinho filho de um mestre de banda de mesmo
nome – Joaquim Antônio da Silva Calado. O flautista Calado Júnior (como foi
conhecido até a morte do pai, em 1867), casara-se muito cedo, e ao ficar órfão,
com dezenove anos, foi ganhar a vida tocando não apenas peças clássicas, mas
músicas dançantes, em bailes de casas de família e festinhas de casamento e
batizado.
Ora, como nos ambientes acanhados das salas de visitas não
cabia o instrumental das bandas, essa música doméstica geralmente era fornecida
apenas por tocadores de violão e de cavaquinho. Segundo afirmação do maestro
Baptista de Siqueira em seu livro intitulado “Vultos Históricos da Música
Brasileira”, “esses artistas aprendiam uma polca de ouvido e a executavam para
que os violonistas se adestrassem nas passagens modulantes, transformando os
exercícios em agradáveis passatempos”.
A Calado ia caber exatamente o papel da flauta nesses
conjuntos, criando o primeiro grupo instrumental de caráter absolutamente
popular e brasileiro, e cuja forma chorada de execução ia conferir ao estilo e
aos grupos de músicos o nome de choro. Explicando essa criação do ponto de
vista musical, o maestro Baptista de Siqueira, referindo-se ao grupo de Calado,
escreveu que “constava ele, desde sua origem, de um instrumento solista, dois
violões e um cavaquinho, onde somente um dos componentes sabia ler a música
escrita: todos os demais deviam ser improvisadores do acompanhamento harmônico”.
O resultado da música produzida por esses conjuntos de
choro, à base de modulações, era a criação de melodias tão trabalhadas que os
editores as julgavam avançadas demais e, temendo fracasso de venda, obrigaram
Calado a imprimir suas primeiras obras por conta própria, como aconteceu com as
polcas “Querida Por Todos” (dedicada à sua companheira de choro Chiquinha
Gonzaga), “A Sedutora” e “Linguagem Do Coração”.
E os editores não deixavam de ter alguma razão porque,
segundo ainda observação de Baptista de Siqueira, já nessas polcas aparecia
“uma espécie de introdução servido de estribilho permanente a duas estrofes que
se sucedem em alternativas na execução”. Essa característica iria servir de
base, menos de dez anos depois, para a criação de um gênero novo de música
dançante, de par enlaçado, genuinamente brasileira e popular: o maxixe. O
reconhecimento da importância de Calado no meio dos próprios chorões,
entretanto, foi desde logo muito grande, e pode ser medido hoje pelo
levantamento da influência claramente exercida pelo flautista sobre os músicos
populares da sua geração.
“O grande flautista”, escreveu a pioneira da pesquisa de
música brasileira Marisa Lira num artigo sobre Calado, “criou escola,
contaminando os executores da época com suas interpretações originais. Lançou,
já não há mais dúvida, as bases da nacionalização da música popular
brasileira.” E explicando a ação de Calado como animador da formação de grupos
de choro, acrescentou: “Foi seu acompanhador predileto o Saturnino, uma pardo magrinho
que tocava violão admiravelmente. Seus companheiros de choro: Viriato Figueira,
Chiquinha Gonzaga, o Silveira, o Luisinho flautista, Rangel, Baziza, Ismael
Correia, Zequinha, Leal Careca e mais alguns”.
Ao lado dessa posição de destaque na área popular, Calado
alcançaria em 1871 a honra de tornar-se o terceiro professor da cadeira de
flauta do Conservatório Nacional de Música, o que lhe permitiria receber de Dom
Pedro II, em 1879, juntamente com os demais professores daquela instituição, a
Ordem da Rosa, no grau de comendador. A honraria, no entanto, como no caso de
tantos outros compositores brasileiros, não o impedia de ter que continuar a
tocar como músico profissional em bailes e festas para ganhar a vida.
E foi assim que, logo após o carnaval de 1880, quando ainda
tocou flauta como componente de orquestra de bailes de teatro, o Comendador
Joaquim Antônio da Silva Calado caiu de febre por conta de uma epidemia que
grassava no Rio de Janeiro e morreu em março, sendo enterrado no cemitério de
São João Batista “com pequeno acompanhamento de amigos” – conforme esclarece
seu biógrafo Baptista de Siqueira –, “por haver sucumbido de doença contagiosa
e estar sendo proibido qualquer tipo de aglomeração humana”.
Com a morte de Calado, a música brasileira teria que esperar
alguns anos até o aparecimento de outro flautista à altura de sua arte (seria
Patápio Silva, nascido na vila de Itaocara, no Estado do Rio de Janeiro, a 22
de outubro de 1881), mas as suas composições nunca chegaram a ser esquecidas.
No início do século 20, mais de vinte anos depois do desaparecimento do
flautista, o pernóstico poeta Catulo da Paixão Cearense resolveu tomar como um
desafio as dificuldades musicais da última composição de Calado, a polca “Flor
Amorosa”, e transformou-a em canção, colocando-lhe os versos que lhe garantiram
a sobrevivência na memória popular: “Flor amorosa, compassiva, sensitiva...”
A partir de 1902 começavam a ser gravados discos de
gramofone, e o teatro de revista, que vinha crescendo desde fins do século 19, cada
vez mais pedia músicos para animar os quadros musicados das peças alusivas a
temas da atualidade. Entre esses muitos músicos de choro, que chegaram a ver
perpetuadas em discos algumas das melhores provas do seu talento, estava Pedro
Galdino, operário de uma fábrica de tecidos do bairro carioca de Vila Isabel.
Nascido na segunda metade do século 19, Pedro Galdino –
preto de origem popular urbana inequívoca, como revela sua condição de operário
têxtil – aprendeu a tocar flauta no auge da influência de Calado, o que
significa dizer que era um virtuosista, preocupar em dificultar nos solos o
acompanhamento improvisado dos violões e do cavaquinho.
Os dados pessoais sobre Pedro Galdino são muitos poucos. Ary
Vasconcelos afirma em seu livro “Panorama da Música Popular Brasileira” que ele
foi mestre da banda da Fábrica Confiança de Tecidos, de Vila Isabel, e que
vinha de uma família de músicos. Mas as poucas músicas que chegou a deixar
gravadas em discos da Casa Faulhaber explicam perfeitamente a razão do seu prestígio
entre os chorões cariocas dos primeiros vinte anos do século 20.
Ary Vasconcelos aponta como a mais famosa das composições de
Pedro Galdino a música “Meu Pensamento”, transformada, depois de receber letra
de Tuttemberg Cruz, na canção “Olhos De Veludo”. Em discos Faulhaber, porém,
Pedro Galdino gravou schottisches como “Adélia”, valsas como “Pastorinha” e
polcas como “Flausina” e a célebre “Jocosa”, que serve como o mais perfeito
exemplo não apenas da inspiração de Pedro Galdino, mas do próprio espírito do
choro, como forma de tocar.
Um pouco mais novo do que Pedro Galdino, o pistonista
Paulino do Sacramento (1880-1926), também músico de banda, alcançaria um degrau
a mais na carreira: além de conseguir gravar algumas de suas músicas, pôde
atingir o estágio de profissionalização, tornando-se maestro de orquestra do
teatro de revista carioca. Contemporâneo e companheiro do maestro Francisco
Braga no Colégio dos Meninos Desvalidos, em cuja banda tocaram juntos, o início
da carreira do jovem Paulino do Sacramento ia ficar ligado ao do grande
maestro: quando Braga, já regente da banda do colégio, ganhou uma bolsa para
especializar-se em teoria em Paris, foi Paulino o indicado para substituí-lo.
Como o teatro de revista estava, no início do século 20,
precisando de músicos capazes de escrever na pauta (a falta de maestros
brasileiros obrigava o teatro musicado a servir-se de estrangeiros como o
português Gomes Cardim e o espanhol Júlio Cristóbal), o ex-menino desvalido
Paulino do Sacramento pôde transferir-se para as orquestras de poço de teatro.
A partir da revista “O Rio Civiliza-se”, em 1912 (ao que tudo indica sua
primeira contribuição para o teatro musicado), o nome de Paulino do Sacramento
não deixa mais de figurar nos cartazes da Praça Tiradentes, produzindo
partituras para revistas, operetas e burletas até 1926, quando morre a 9 de
março.
O ano da morte de Paulino Sacramento marcou, por
coincidência, o momento de glória de outro músico de orquestra de teatro de
revista, seu contemporâneo: o maestro Pedro de Sá Pereira. Temperamento
romântico (era, como seu 1,60 m de altura, muito tímido e franzino), Pedro de
Sá Pereira especializara-se no gênero que a partir da década de 20 se
convencionara chamar de canção sertaneja.
A influência da poesia de Catulo da Paixão Cearense chegara
também ao teatro de revista, onde as figuras idealizadas dos caboclos começavam
a queixar-se do desprezo das morenas com uma insistência que contaminou
irremediavelmente a música popular brasileira seguramente até a década de 40 (ou
até hoje, se for bem observado o repertório da música sertaneja).
Pois foi ao compor uma dessas canções para a revista
“Comidas, Meu Santo!”, estreada no Teatro São José a 1.º de setembro pela
companhia da atriz Margarida Max, que Sá Pereira ia conseguir lançar o seu nome
muito além dos palcos do teatro musicado. A “canção-modinha” (como dizia a
partitura), cantada na revista pelo barítono Roberto Vilmar, foi a célebre
“Chuá, Chuá”, cuja letra era do revistógrafo Ari Pavão, e que ainda hoje é
lembrada pelo seu estribilho: “E a fonte a cantá / Chuá, chuá... / E as águas a
corrê... / Chuê, chuê...”
Quando, a partir da década de 30, uma profusão de sambas e
de marchas invadiu o teatro de revista com Sinhô e toda uma geração de
compositores das camadas mais populares do Rio, Sá Pereira – silenciosamente,
como era do seu feitio – retirou-se com o repertório das suas canções debaixo
do braço e foi tocar o seu “Chuá, Chuá” para os passageiros dos navios da
Companhia de Navegação Costeira, como pianista de bordo.
A partir dos últimos anos do século 19, as principais
cidades brasileiras assistiram ao despertar da consciência das camadas mais
humildes da sociedade. Inferiorizados até 1888 pela existência da escravidão,
os trabalhadores livres da era republicana começaram a disputar um lugar na
sociedade, o que, no campo do lazer, se evidenciou por uma crescente
participação na festa do carnaval, transformada pela classe média numa imitação
da brincadeira europeia, à base de desfiles de carros alegóricos, corsos e batalha
de flores.
Os integrantes dessas populações predominantemente negras e
mestiças mais integradas na estrutura econômica das cidades, como os empregados
de fábricas e pequenos burocratas, organizaram-se principalmente no Rio de
Janeiro em sociedades recreativas denominada ranchos, e passaram a sair no
carnaval produzindo um tipo de música orquestral que acabaria fazendo nascer as
marchas de rancho – e, em decorrência delas, as marchas-ranchos.
Os mais pobres, porém, onde a cor negra predominava (era o
mestiço que invariavelmente galgava os primeiros degraus da escala social),
continuaram a exercitar-se nos seus batuques e rodas de pernadas ou de capoeira
(nome preferido na Bahia). Essa parte da população não saía no carnaval de
forma organizada, mas em cordões desordenados, cujos desfiles terminavam quase
sempre numa esfuziante coreografia de rabos-de-arraia e em coloridas cenas de
sangue.
No entanto, ia ser da música à base de percussão produzida
por esses negros com o nome de “batucada” que ia nascer o gênero popular mais
nacionalmente representativo da música brasileira: o samba. Três dos mais
velhos representantes dessa fase seriam Caninha, João da Baiana e Donga, dos
quais os dois últimos ainda chegaram a década de 70 do século 20, não apenas
como sobreviventes de uma era extinta, mas continuando a demonstrar a validade
da sua arte em espetáculo evocativamente denominados da “velha guarda”.
O mais antigo, José Luís de Morais, o Caninha (1883-1961),
chamado em criança de Caninha Doce (porque vendia roletes de cana na zona da
estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro), aprendeu a
música dos negros durante as batucadas realizadas na Festa da Penha. E em 1932
– quando essa população de descendentes de escravos foi obrigada a morar em casebres
no alto dos morros do Rio de Janeiro – compôs o samba que valia por uma aula de
história da música popular: “Samba do morro/ Não é samba, é batucada/ É
batucada/ É batucada.../ Cá na cidade/ A escola é diferente/ Só tira samba/
Malandro que tem patente”.
De fato, quando Donga, o mais novo desses três pioneiros,
realiza em 1917, sob o nome de samba, o arranjo de motivos populares que
intitulou “Pelo Telefone” sua primeira providência é registrar música e letra
na Biblioteca Nacional – o que equivalia mesmo a tirar patente. A atitude de
Donga (Ernesto dos Santos, Rio, 1871-1974) significa que, coincidindo com o
aparecimento do samba, a música popular, como criação destinada ao
entretenimento da massa, tinha atingindo o estágio de produto comercial capaz de
ser vendido e de gerar lucros. O crescimento da indústria do disco, e logo o
aparecimento do rádio, seguidos mais tarde do cinema e da televisão, provaram
que Donga tinha sido um pioneiro esperto ao correr à repartição oficial para
“tirar patente”.
Mas o exemplo de vida do mais velho sobrevivente da geração
que criou o samba a partir da batucada, João Machado Guedes (chamado João da
Baiana porque era filho da baiana Perciliana de Santo Amaro), veio mostrar que
essa esperteza ia valer para todos, menos para os que criaram o próprio samba. Donga
viveu seus últimos anos como funcionário aposentado da Justiça, doente e quase
cego, num subúrbio do Rio de Janeiro. João da Baiana, com 85, acabou por ser
recolhido à Casa dos Artistas de Jacarepaguá, na zona rural carioca, passando o
fim dos seus dias de uma forma não muito diferente daquela que descreveu com
bom humor no seu samba de maior sucesso, o “Cabide De Molambo”, de 1932: “Mas
hoje eu ando / Com o sapato furado...”
Uma das mais completas figuras de criador das camadas
populares foi o tocador de cavaquinho, ritmista, compositor e pintor carioca
Heitor dos Prazeres. Filho de descendentes de baianos da Cidade Nova, no Rio de
Janeiro (o pai era o clarinetista Eduardo Prazeres, da Banda Policial, a mãe, a
costureira Celestina), Heitor surgiu para a pintura e a música ainda na
infância, dividido entre os desenhos da Cartilha de Felisberto de Carvalho (que
coloria com lápis) e o cavaquinho do tio, que ele tirava às escondidas do prego
que o prendia à parede. Na sala – lembrou mais tarde em seu depoimento no Museu
da Imagem e do Som da Guanabara o próprio Heitor – havia também um piano, mas
esse só era aberto nos dias de festas e aos sábados, para limpeza.
Após uma infância típica de menino das classes populares do
Rio do início do século (nasceu perto da Praça Onze de Junho a 23 de setembro
de 1898), passou por várias escolas, sempre expulso, foi preso por vadiagem aos
treze anos e, “aprendiz de tudo”, trabalhou como tipógrafo, sapateiro e
marceneiro, tornando-se mestre nesta profissão. Quando podia largar a pua,
Heitor pegava o cavaquinho e com outros rapazolas do seu tempo – entre os quais
Donga e Caninha – ia apreciar os sambas na casa da baiana Tia Ciata, onde o
maioral era o baiano criador dos primitivos ranchos cariocas, Hilário Jovino
Ferreira. Integrado nesse meio de tiradores de samba de partido alto, Heitor
(conhecido por Mano Lino, nas rodas de sambistas) saía de baiana no carnaval
tocando seu cavaquinho, e em 1932 já firmava seu nome, vencendo, com o samba
“Mulher De Malandro”.
Quatro anos depois, quando morre sua primeira mulher, Mano
Lino escreve uns versos sobre um pierrô apaixonado, que vivia só cantando, e de
um encontro com Noel Rosa sob os Arcos, perto da Lapa, nasce o seu primeiro
grande sucesso nacional: a marcha “Pierrô Apaixonado”. É então que Heitor
começa a fazer desenhos para ilustrar as partituras de suas músicas,
lançando-se a experiências com pintura a óleo em 1936. Em menos de dez anos
teria a honra de ver um dos seus quadros incluído na mostra de arte brasileira
em Londres, para vender em benefícios da Royal Air Force. Era a tela Festa de
São João, diante da qual a Rainha Elizabeth perguntou: “Quem é esse pintor
extraordinário?”
Premiado na I Bienal de São Paulo em 1951 com seu quadro Moenda,
o sambista-pintor (a esta altura contínuo do Ministério da Educação, por
influência do poeta Carlos Drummond de Andrade), ainda tinha tempo para assinar
o ponto na Rádio Nacional – cujo coro dirigia havia vinte anos – e para
apresentar-se em shows com seu grupo de mulatas passistas intitulado Heitor e
Sua Gente. Foi assim que a morte por câncer o encontrou no primeiro minuto da
madrugada de 4 de outubro de 1964, atirado afinal, depois de uma vida de cores
ritmo e poesia – como ele mesmo definiu – “sobre um leito branco como uma negra
bandeira”.