sexta-feira, 29 de maio de 2015

Uma história que deu samba (15)


“Qualquer criança bate um pandeiro / E toca um cavaquinho, / Acompanha o canto de um passarinho / Sem errar o compasso. / Quem não acreditar poderemos provar, / Pode crer, nós não somos de enganar, / Melodia mora lá no Prazer da Serrinha...”
O samba de Hélio dos Santos, o tio Hélio, e Rubens da Silva é o primeiro retrato musical da Escola de Samba Prazer da Serrinha.
Como a maioria das coirmãs, ela nasceu da união de componentes de vários blocos carnavalescos que existiam no morro da Serrinha, formados pela mesma massa humana expulsa dos logradouros mais valorizados do centro da cidade do Rio de Janeiro e que procurou abrigo nos morros da periferia.
Havia também os interioranos, que abandonavam trabalhos agrícolas no Espírito Santo, São Paulo, Estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais, e os escravos recém-libertos, que procuravam sobrevivência no então Distrito Federal, a Guanabara.
Situado no distante subúrbio de Madureira, o morro da Serrinha não podia oferecer outro lazer para seus habitantes, que não fosse a música.
Assim, desde que começou a ser habitado, passou a contar com grupos carnavalescos de blocos familiares, que reuniam esses primeiros moradores.
Francisco Zacarias de Oliveira, funcionário da Companhia de Limpeza Urbana, foi um dos pioneiros, tendo sido fundador de blocos como Primeiro Nós, Bloco da Lua, Dois Jacarés e Três Jacarés.
Antes deles, no Beco dos Novaes, a moçada já brincava no Bloco Borboleta Amorosa.
Alfredo Costa, que viria a ser um dos principais donos do samba na Serrinha, guarda-freios da Estrada de Ferro Central do Brasil, iniciou carreira como fundador do famoso bloco carnavalesco Cabelo de Mana.

Foi esse bloco, surgido em meados dos anos 20, a origem da Escola de Samba Prazer da Serrinha, que desde a sua criação foi comandada com mão de ferro por Alfredo Costa. 
Como ocorrera no Cabelo de Mana, quem mandava na Escola era seu Alfredo e a família.
A mulher, Araci Costa, a Dona Iaiá, chegou a ser eleita a Rainha do Samba em 1937, e os irmãos dela, Delfino, Chico e Teodomiro, ocupavam os postos-chaves na administração da Prazer da Serrinha.
Era seu Alfredo quem autorizava ou negava a entrada de qualquer elemento novo na Escola. 
O candidato tinha que se submeter a rigoroso exame feito por ele.
O sambista Mano Décio da Viola – que passou a ser conhecido assim na Prazer da Serrinha – foi um dos que sofreu a “sabatina” de seu Alfredo. 
Ele não foi o único.

Fuleiro, o grande Mestre Fuleiro, um dos maiores diretores de harmonia da história do samba, teve muitos problemas com Alfredo Costa.
Até mesmo o cunhado Chico quase provocou uma cisão na escola após uma discussão feia com Alfredo, ao desfilar com uma ala de baianas própria, na Festa da Penha.
A maior contestação à autoridade de seu Alfredo aconteceu no carnaval de 1945.
O belo enredo era “Cais Dourado”, que no dia do desfile sofreu com a chuva, complicando a descida do morro.
Para culminar, Mestre Fuleiro, diretor de harmonia, cerceado por ordens de Alfredo Costa, quebrou todas as alegorias, distribuiu sopapos, deu pernadas, iniciando um tumulto que envolveu todos os componentes.
A Prazer da Serrinha compareceu simbolicamente ao desfile, apenas com sua bandeira, Alfredo Costa e uns poucos sambistas.
Em 1946, Antônio Caetano, fundador da Portela, filiou-se à Serrinha. Trouxe um enredo pronto, “A Conferência de São Francisco”, que foi musicado por Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira.
A escola estava bem ensaiada, o enredo apropriado e todos acreditavam em um grande carnaval. 
Na hora de iniciar o desfile veio a ordem de Alfredo Costa para trocar o samba. 
Mano Décio retirou-se chorando.
Para o resto da escola, o desânimo foi total e resultou no décimo primeiro lugar.

Sebastião de Oliveira, o Molequinho, deu o grito de protesto, em forma de samba. Ao lado da bica d’água que abastecia o morro, cantava: “Quase que chorei/ Quando nossa escola desfilou/ Senti grande emoção que meu coração quase parou/ O samba do concurso/ Não era aquele/ Era um samba harmonioso/ Que o Mano Décio escreveu”.
A cisão definitiva viria apenas no ano seguinte. Abaixo-assinados contra a diretoria da Prazer da Serrinha corriam o morro, sambistas não compareciam aos ensaios e prometiam não desfilar.
Mas mesmo assim, completamente desorganizada, a escola conseguiu ainda sair no desfile de 1947.
A situação, porém, era incontornável, e logo após o carnaval, em 23 de março de 1947, Sebastião Molequinho chamava as lideranças do morro para uma conversa na casa de sua irmã Eulália, na Rua da Balaiada. Ela e o marido, José Nascimento, eram figuras respeitadas.
No aniversário de José, os mais famosos jongueiros do Rio se reuniam na casa do casal, onde era fácil achar Mano Elói, Manuel Bam-Bam-Bam e seu Rufino da Portela, entre outros.
Molequinho, acostumado a viver entre os líderes, conta o resultado do encontro, ao qual compareceram nomes como os de João Gradim, Mestre Fuleiro, Silas de Oliveira, Manula, Fumaça, Mano Elói e Antônio Caetano (que rabiscou o projeto da bandeira): “Com a presença de consagrados artistas, foi solicitado aos presentes que apresentassem para discussão o nome que se daria à futura escola e as cores de seu pavilhão. Foi proposto por mim o nome de Império Serrano, aceito por unanimidade. Propus também as cores azul e amarelo-ouro, não sendo aprovadas. As cores verde e branca, que tanto têm nos abrilhantado, foram escolhidas pelo Antenor, que é inclusive autor do primeiro samba do Império Serrano, destacando em seus versos as cores da escola.”
Estava fundado o Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, que, ao colorir a avenida de branco e verde, foi apelidado carinhosamente pelos sambistas de arroz-com-couve.
Um prato tão forte e substancioso que não deixou por menos: campeão em seu primeiro ano, em seu primeiro desfile, colocando-se à frente da Mangueira, Portela, Unidos da Tijuca e outros bichos-papões.
Quando as notas chegaram, com a vitória do GRES Império Serrano, Alfredo Pessoa, da Secretaria de Turismo do Rio e integrante do júri, tentou argumentar que não ficaria bem uma estreante ganhar das grandes escolas tradicionais.
Antes que alguém tentasse modificar o resultado, o jornalista Irênio Delgado levou os mapas de apuração ao locutor Heron Domingues, e, com a divulgação, a vitória foi consumada.
Irênio era figura de prestígio entre os sambistas, vice-presidente da Federação Brasileira das Escolas de Samba, criada para fazer a frente à União Geral das Escolas de Samba, acusada de tendências comunistas.

Mano Elói, sabendo que Irênio era amigo do prefeito Mendes de Morais, tratou de atraí-lo para a Império Serrano.
A posterior eleição de Irênio para a presidência da Federação acabou por fazer com que Mangueira e Portela se desligassem da mesma.
No ano seguinte, 1949, a campeã foi a Império Serrano. Em 1950, quem venceu foi a Império Serrano. No Carnaval de 1951, o título foi para... a Império Serrano. Tetracampeã logo ao nascer.
Quatro campeonatos seguidos, formando os alicerces de um futuro repleto de conquistas e vitórias. Quatro títulos enfeitando um berço de ouro imperial.
Poderiam querer mais – para começar uma história destinada a coloca-los entre os maiores do samba, em todos os tempos – os insatisfeitos dissidentes da Prazer da Serrinha?
Na verdade, o Palácio do Samba imperiano nasceu modesto. O luxo era o talento dos seus bambas. A riqueza, a inspiração de seus poetas. O patrimônio, a beleza de suas cabrochas e a determinação de seus fundadores. Sua fé, a Serrinha.

Dona Ivone Lara e Clementina de Jesus
Enfermeira de profissão durante muitos anos, Ivone Lara é um exemplo perfeito das jovens suburbanas cuja vida inteira se desenvolveu ao redor do samba.
Casou-se aos 25 anos de idade com Oscar Costa, filho de Alfredo Costa, presidente da escola de samba Prazer da Serrinha, onde conheceu alguns compositores que viriam a ser seus parceiros em algumas composições, como Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira.
Devotada à sua Serrinha, cresceu com a Império Serrano e, fazendo sambas, como única mulher compositora na ala, tocando cavaquinho, cantando com voz de rara beleza, construiu sua carreira musical.
Só ela é apresentada com respeito como Dona (Ivone Lara) em shows e espetáculos. E, por tudo isso, se transformou, com inteira justiça, na grande dama da Escola de Samba Império Serrano.
Ao chegar à Serrinha por volta de 1916, Antônio dos Santos estava destinado a ser o Mestre Fuleiro, figura básica na história do samba.
Substituindo por acaso o diretor de harmonia em um ensaio da Escola de Samba Prazer da Serrinha, descobriu sua vocação para o cargo e se tornou um dos maiores de todos os tempos.
Desde a fundação da Império Serrano, para a qual contribuiu, brigando até fisicamente na Serrinha, ocupou a função e com tal influência que seu nome passou a representar um dos sinônimos da Escola de Madureira.
No “púlpito” dos compositores, comum em todas as quadras das escolas, Silas de Oliveira Assumpção e Décio Antônio Carlos não poderiam estar mais à vontade.

Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola formaram a mais perfeita dupla de compositores de sambas-enredos da história do gênero.
De origens diversas – Silas era carioca, do subúrbio, e Mano Décio, baiano da musical cidade de Santo Amaro da Purificação –, conseguiram entrosamento perfeito e a eles a música popular brasileira deve a fixação do samba-enredo.
A partir deles, foi codificado o trabalho dos compositores naquele gênero. 
Mano Décio levou Silas para a Serrinha e fez aflorar seu talento.

De temperamentos diferentes, Mano Décio era extrovertido, frequentando o samba desde a infância, transitando pela Mangueira e por vários outros redutos de samba.

Contrastava com Silas, criado nos dogmas do protestantismo e caseiro por excelência, preferindo curtir a mulher e os filhos à boêmia. 
Mas, na hora de compor, viravam irmãos siameses, ourives do samba.
Os dois desfiles de estreia do GRES Império Serrano não foram realizados exatamente no carnaval. Quem conta é Molequinho, aquele que fazia tudo desde o primeiro instante de fundação da escola: “Preparamo-nos para a saída de Aleluia do ano de 1947 e percorremos Madureira, Vaz Lobo e Irajá, tendo uma estrondosa recepção por parte do povo. A partir daquele dia senti que meus esforços tinham sido recompensados”.
Depois, a escola participou de um desfile na passagem do ano de 1947 para 1948, na Praça Mauá. Aquele se transformou no primeiro desfile da Império Serrano fora de seu local de origem.
E isso só foi possível porque os instrumentos da bateria, pertencentes à extinta escola Deixa Malhar, da qual Mano Elói foi dirigente, foram doados por ele à nova escola.
O primeiro desfile oficial foi com o enredo “Castro Alves”, em 1948. Como já havia um samba com esse nome, correspondendo ao enredo, ele foi escolhido.
Molequinho, coordenador da escola, entrou como parceiro. Mano Décio apanhou uma carona e também aparece na parceira. Na verdade, o único compositor foi Comprido.

A vitória da Império Serrano, logo na estreia, ficou entalada na garganta das grandes escolas, principalmente da Portela, que tinha sido convidada para batizar a vizinha de Madureira.
Antes mesmo do anúncio do resultado oficial, a Império resolveu visitar a madrinha.
Foi recebida friamente por um discurso de Alvaiade, que previa “em futuro distante”, algum sucesso para os imperianos.
Anunciada a vitória, a Portela assumiu a restrição e recusou-se a batizar a Império.
Em 1949, em razão dos conflitos entre as escolas, realizaram-se dois desfiles.
No oficial, o da Federação Brasileira das Escolas de Samba, venceu a Império Serrano, com o enredo “Exaltação a Tiradentes”, samba-enredo de Mano Décio, Penteado e Estanislau Silva.
No ano seguinte, de novo dois desfiles agora ambos oficiais.
No da Federação, a Império Serrano voltou a ser campeã, com “Batalha Naval do Riachuelo”, samba de Mano Décio, Penteado e Molequinho.
A Mangueira ganhou o desfile da União Cívica das Escolas de Samba e a Prazer da Serrinha fez sua última apresentação no desfile não-oficial da União Geral das Escolas de Samba do Brasil.

A Império volta à avenida em 1951 (ano em que Getúlio Vargas retoma o poder pelo voto) com o enredo “Sessenta e Um Anos de República”, samba assinado por Silas de Oliveira, getulista convicto. Conquista o tetracampeonato, aumentando o desespero das rivais.
A chance de enfrentar a Império foi dada à Mangueira e à Portela em 1952.
O desfile foi unificado e todas elas iriam para a mesma pista. Na hora do desfile da Império, um temporal desabou sobre o Rio de Janeiro, expulsando os jurados, que não atribuíram notas.
Prejudicada, a Império solicitou a anulação do desfile e conseguiu. Não houve campeã no carnaval de 1952.
Com Waldir Medeiros e João Fabrício, Silas de Oliveira compôs “O Último Baile da Corte Imperial”, que se tornou conhecido como “Ilha Fiscal”. Pela primeira vez a Império não é campeã.
Em 1953, ficou em segundo lugar, que viria a repetir-se ano seguinte, quando desfilou com “O Guarani”, cujo samba-enredo foi novamente de Silas de Oliveira, agora em parceria com João Fabrício e Penteado.
A Império Serrano voltaria a ser campeã em 1955, com “Exaltação a Caxias” (Silas e Mano Décio), e em 1956, com “Esmeraldas”, da mesma dupla.

Em 1960, ano em que foi campeã ao lado da Portela, Mangueira, Salgueiro e Capela, a Império apresentou-se com “Medalhas e Brasões”, também de Mano Décio e Silas.
Mano Décio comporia “Rio dos Vice-Reis” (1962), com Aidno de Sá e David do Pandeiro, e também o último samba-enredo de Silas exibido pela Império, o clássico “Heróis da Liberdade”, em 1969, que ainda teve Manoel Ferreira como parceiro.
Silas fez, com D. Ivone Lara e Bacalhau, “Cinco Bailes Tradicionais na História do Rio” (1965), e sozinho, “Pernambuco, Leão do Norte” (1968).
O final da parceria entre Mano Décio e Silas aconteceu paradoxalmente em uma escola de samba de São Paulo.
No mesmo ano de 1969, comporiam, também com a ajuda de Manoel Ferreira, “Grito do Ipiranga”, para a Escola Império do Samba, que foi campeã do carnaval de Santos.

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