Por Vinicius de Moraes
Conheci Haroldo Costa em Paris, em 1954, quando ali esteve com o grupo folclórico negro “Brasiliana”: idéia sua que Miecio Askanazy empresariou e levou adiante.
O pioneirismo da iniciativa e o relato circunstanciado das extraordinárias aventuras por que passou o conjunto, sobretudo em sua turnê sul-americana, fizeram-me de saída amigo de Haroldo: e boas risadas demos à lembrança das trapalhadas em que andou metido.
Cozinhei-lhes uma feijoada – e se tivesse dado a cada um seu peso em ouro não teriam saído mais felizes.
Dois dias depois ele me mandava dizer de Bruxelas que ainda tinha na boca o gostinho do molho de pimenta que eu lhes tinha servido.
Pudera! Tratava-se de uma pimenta africana que eu tinha encontrado na “Maison Hediard”, ali na Madeleine: fogo puro!
Em 1956, quando consegui financiamento para minha peça “Orfeu da Conceição”, foi em Haroldo Costa que finalmente nos fixamos, o diretor Leo Jusi e eu, para o papel-titulo.
Ele aliava ao physique du role um grande refinamento natural, que o levou a trabalhar sua personagem num sentido mais poético, como queríamos: um deus do morro, que com seu violão e seus sambas dilacerava o coração de todas as mulheres, acabando por atrair sobre si a tragédia e a morte.
Era uma iniciativa também pioneira, pois o teatro negro no Brasil limitava-se ainda aos corajosos esforços de Solano Trindade e Abdias Nascimento, e tudo teve que ser feito a bem dizer do nada.
Oscar Niemeyer largou seus projetos em andamento e veio fazer o cenário que lhe pedimos.
Antônio Carlos Jobim sentou-se ao piano e compôs sua primeira ouverture, além dos primeiros sambas de nossa parceria.
O bom Ciro Monteiro meteu sua caixa de fósforos no bolso e encarou que lhe com a maior seriedade em cena aberta.
Léa Garcia, antes do seu excelente desempenho no filme “Orfeu Negro”, extraído (a meu ver mal) da peça, era uma figura inesquecível, um figurino vermelho de Lila Bóscoli contra o ciclorama estrelejado.
E uma surda exclamação uníssona de admiração ergueu-se da platéia quando, ao som dos últimos acordes da ouverture de Jobim, o pano-de-boca abriu sobre o cenário de Niemeyer, na elegante noite de estréia no Teatro Municipal totalmente lotado.
“Orfeu da Conceição” marca o inicio do aproveitamento em larga escala do artista negro brasileiro, no teatro e em shows de boate.
E Haroldo Costa, pelo rigor seu profissionalismo e dignidade do seu desempenho, constitui certamente um exemplo para seus colegas de profissão.
A compostura do seu comportamento humano e artístico, aliado a uma inteligência arejada e despreconcebida, fazem dele, também, um autêntico líder de sua gente.
Mas não líder metido a tal.
Um que se fez porque sente o drama de sua raça e procura sempre levantá-la através das manifestações mais validas de sua contribuição à cultura brasileira: o ritmo, a música e a dança.
Trabalhador incansável, sua atuação em TV e nas boates tem sempre a distingui-la esse traço de amor à arte e aos mitos negros, mas sem qualquer preconceito e vasto amor pela beleza e pela cultura, no sentido de um Brasil cada vez mais humano e integrado.
Para mim, Haroldo Costa estará sempre ligado à imagem do meu Orfeu Negro, tal como o criei, com todo o patético do mito grego transportado para o morro e o carnaval carioca.
Somos amigos fraternos, e o melhor que dele poderia dizer é o que ele mesmo cantava em cena:
Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver...
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