sexta-feira, 25 de março de 2011

A gênese muito louca do fantástico grupo Pró-Álcool


Lá pelos idos de 1978, quando o Olímpico Clube concluía o seu Parque Aquático sob a gestão de Ary Castro Filho e começava a atrair uma pequena parcela dos associados para eventos realizados na sede social, nos fins de semana, tudo era feito na base do improviso.

O churrasco era assado em uma churrasqueira de meio camburão, tendo como grelha um aro de “fusca”, e cada sócio contribuía com uma parcela das carnes e dos acompanhamentos (picanha, maminha, chuleta, calabresa, frango, coxão de porco, arroz branco, feijoada, macarronada, farofa, saladas, molhos, etc).

Ainda não havia sido colocado o piso em redor das piscinas e do salão do Parque Aquático, o que não impedia os bebuns de caírem n’água, sob a constante vigilância de Kako Caminha, campeão amazonense de natação e diretor de Natação do clube.


A música ambiente era proveniente de uma vitrola Belair a base de discos de vinil levados pelos próprios associados, o que acabava provocando confusões quando alguém interrompia um novo rock do Raul Seixas (“Maluco Beleza”, por exemplo) para colocar um antigo bolero do Orlando Silva (“Atire A Primeira Pedra”, por exemplo).

Para evitar que os abusados DJs (e cada um dos 50 sujeitos presentes na muvuca era um abusado DJ!) partissem para o pugilato explícito em defesa de suas canções favoritas, um grupo de associados começou a fazer um discreto som ao vivo, em uma derradeira tentativa de acalmar os ânimos de gregos e troianos.

Composto por Zé da Manola (tamborim), Jander Cabral dos Anjos (pandeiro), Mario Toledo (atabaque), Arnaldo Marques (violão), Ary Castro Filho (reco-reco) e Paulo José (vocal), o grupo, no início, tocava meio envergonhado, meio desafinado, mas com o tempo foi pegando cancha, ficando mais confiante, mais entrosado e mais abusado.

O nome do grupo, bem como o número de participantes, era modificado ao sabor das circunstâncias. Nas noites de sextas-feiras, quando faziam o pré-show do iniciante Grupo Carrapicho, se chamava “Flor do Samba”. Aos sábados, “Som da Feijoada”. Aos domingos, “Somos Todos Irmãos”. Nos feriados, pontos facultativos e dias santos, “Samba da Diretoria”.


Eterno diretor de Marketing da Cervejaria Miranda Corrêa (que havia aposentado a cerveja XPTO para produzir a cerveja Brahma Chopp), o engraçadíssimo Paulo José começou a levar a turma do Bar do Caldeira para fazer um upgrade de qualidade nas rodas de samba do Olímpico.

Entre as novas “cobras criadas” que começaram a frequentar o clube estavam Luiz Oswaldo (violão de sete cordas), Boca Roxa (agogô), Rodrigo Caldeira, dotado de um vozeirão afinadíssimo e sabendo de cor e salteado todos os sambas em homenagem à Estação Primeira de Mangueira, e o pagodeiro Mauro Ferradura, que fazia uma impagável série de duetos com o Paulo José, deixando o cabaré em polvorosa.

Um belo dia, Paulo José, um emérito gozador, começou a tirar sarro dos freqüentadores do clube dizendo ao microfone que o grupo não precisava de aplausos e que podiam vaiar a vontade:

– Meus amigos do Olímpico Clube, esse nosso conjunto é um conjunto independente! Independente de qualidade, independente de harmonia, independente de bom repertório... Nós não precisamos de vocês pra nada, porque a gente paga o que bebe, toca o que quer e aplaude o que toca. Não atendemos pedidos de fãs, mas também não recusamos oferendas dadivosas das louras estupidamente geladas!

A multidão (sim, a fama do grupo de pagode já arrastava umas 300 pessoas para o clube nos fins de semana) foi à loucura.

Paulo José aproveitou a oportunidade para impor algumas regras, prontamente aceitas pela galera.

Se alguém aplaudisse o grupo depois de uma música, pagaria a multa de uma cerveja Brahma para os músicos.

Se alguém pedisse uma música, independente de o grupo tocar ou não, também teria de pagar uma cerveja para os músicos.

No final das apresentações, o grupo contabilizava cerca de cinco grades de cerveja pagas pelos “infratores”. Uma verdadeira esbórnia!

Representante da geração saúde, o nadador Kako Caminha passou a apelidar o grupo de “Pró-Álcool”, já que ele era movido exclusivamente a birita.


Ary Cachorro, Murilo Rayol e Mário Toledo completamente chapados, após mais uma sessão etílica do Som da Feijoada

O nome acabou sendo adotado pelos músicos porque na mesma época o Brasil havia criado o revolucionário projeto “Pró-Álcool”, de substituição da gasolina pelo etanol da cana de açúcar.

Como ninguém acreditava nos programas do governo, eles resolveram adotar o nome para ver quem acabava primeiro se o grupo ou o programa do governo.

O grupo “Pró-Álcool” ganhou a parada.

Entre os músicos que participaram das diversas formações do “Pró-Álcool” estavam Manuel Batera, Cledson Cleclé, Oldeney Valente, Leonardo Martins, Jander Rubens, Abdon, Domingos Lima, Edson Gil (aka “Edinho da Oana”), Rubelmar (aka “Gato”), Pimenta, Vavá das Candongas, Mark Clark, Adelson Santos, Roberto Caminha, Joaquim Marinho, Porfirio Lemos, João Batista, Jorginho Devagar, Paulo Peruka, Carlos Moss, Carlos Peruka, Aldisio Filgueiras, Américo Madrugada, Aguinaldo do Samba, Paulinho da Viola e sua banda, Evandro Beatles e Serginho do Blue Birds.


Ensaio do Pró-Álcool na casa do Moss, com Vavá das Candongas, Edinho da Oana, Zé Bernal, Ary Cachorro, Arnaldo Marques e Mário Toledo

Nos anos 80, o combo original (Mário Toledo, Aryzinho Cachorro e Arnaldo Marques) resolveu engrossar a couraça e se dedicar mais profissionalmente às rodas de pagode, visando iniciar uma carreira internacional.

Aryzinho foi despachado às pressas para Cuba, para iniciar um intercâmbio com os músicos do Buena Vista Social Club, mas o guitarrista americano Ry Cooder havia chegado primeiro e lavou a burra.

Para o lugar do gozador Paulo José, sem tempo para ensaiar devido suas inúmeras atividades profissionais, o “Pró-Álcool” convocou três puxadores de samba do GRES Mocidade Independente de Aparecida: Cid Cabeça de Poeta, Helinho do Parque e Marinho da Mia.

Membros da Ala de Compositores da Aparecida, os cavaquinistas Marinho Lima, irmão de Cid Cabeça de Poeta, e Toinho do Cavaco também foram incorporados ao grupo com a incumbência de criarem músicas próprias para o “Pró-Álcool”, cujas letras seriam feitas em regime de mutirão.


De barba a la Fidel, Ary Cachorro, em Havana, tentando convencer os músicos cubanos a tocarem em Manaus

Já agora com uma formação definitiva, o grupo deixou o Olímpico Clube e passou a se apresentar na mercearia Nossa Senhora de Aparecida (aka “Xicu’s Bar”), na Rua Alexandre Amorim, no bairro de Aparecida, onde ensaiavam suas primeiras composições.

A partir daí, eles começaram a se apresentar em todos os bares da cidade (Xorimã, Refúgio, Amoricana, Kat Kero, Casinha Branca, Amore, Caldeira, Armando, Casa Ideal, São Marcos), em lupanares descolados (Maria dos Patos, Poços de Caldas, Saramandaia, Piscina), nas casas de amigos, feiras livres, aniversários, casamentos, batizados e funerais.


Edinho da Oana mostrando uma de suas composições enquanto o somelier Arnaldo Marques, com duas canecas, testa a qualidade da manguaça

Quando o repertório cansava o público, o grupo “Pró-Álcool” simplesmente trocava de público e ia tocar em outro lugar.


Nesse meio tempo, o grupo arregimentou a colunista Elaine Ramos (aka “Pimentinha Malagueta”), que mandava bem no repertório de Elis Regina e Gonzaguinha, além de se transformar em relações públicas e grande divulgadora do “Pró-Álcool”.


Em virtude de estar sempre reclamando do assédio sexual das “cachorras”, cada vez mais excitadas com as apresentações dos mancebos, a advogada Valdenira Thomé passou a ser a “mãezona do grupo”.

Era a “mãe loura” que redigia os leoninos contratos de apresentação da moçada, fonte permanente de dor de cabeça dos contratantes, da Polícia Militar (para conter a horda de fãs histéricas), do Ecad e da Ordem dos Músicos, não necessariamente nesta ordem.


Os médicos Raimundo Fernandes Giffoni e Rogelio Casado, que de vez em quando participavam da fuzarca tocando flauta transversal e gaita de boca, respectivamente, passaram a ocupar o posto de psiquiatras oficiais do “Pró-Álcool”, para evitar que o sucesso subisse à cabeça dos músicos muito rapidamente.

Não era pra menos. Os compositores do “Pró-Álcool” já haviam emplacado oito sambas enredos no GRES Mocidade Independente de Aparecida e a escola havia conquistado nove títulos entre os 12 disputados.

Sem contar que Cid Cabeça de Poeta era o projetista dos fantásticos carros alegóricos da escola de samba.

Quer dizer, os caras estavam se achando as próprias pregas da Odete.

Em 1993, eles começaram a gravação do primeiro disco, com músicas exclusivamente feitas pelo grupo, que recebeu o sugestivo título de “Vozes da Mocidade”.

“Nós éramos representantes da grande massa de músicos que deixaram a atividade artística em segundo plano e abraçaram outras carreiras profissionais porque sabiam que seria impossível viver somente de música em Manaus”, relembra Mário Toledo.

Apesar da fama justificada de “reis da esbórnia”, todos os membros do “Pró-Álcool” eram profissionais bem sucedidos.

Mário Toledo é arquiteto e foi responsável pela elaboração dos famosos ginásios poliesportivos GM.

Alcides Queiroz, o “Cid Cabeça de Poeta”, é engenheiro civil.

Arnaldo Marques também é engenheiro civil.

José Hélio Simão, o “Helinho do Parque”, é contador.

Mário Greco, o “Marinho da Mia”, é militar.

Aristófanes de Castro Filho, o “Aryzinho Cachorro”, é advogado e foi três vezes presidente da OAB-Am.

“Nós resolvemos gravar o primeiro disco porque já tínhamos 80 composições próprias, ou seja, material suficiente para dez discos de vinil”, explica Ary de Castro Filho. “Ou a gente gravava logo ou corríamos o risco de esquecer as músicas porque birita e velhice fazem muito mal pra memória!”


Arcangelus, Domingos, Sandro Doença e Manuel Batera

Para dar mais peso às gravações no estúdio, o “Pró-Álcool” convocou vários músicos locais e criou a banda de apoio “Metanol”, formada por Claudio Nunes (maestro, arranjador, violão de 7 cordas, cavaquinho e bandolim), Deley (bateria), Claudio Abrantes (sax alto, clarinete e flauta transversal), Peixinho (trombone), Arcangelus (violão de 6 cordas), Domingos (contrabaixo) e Zé Pneu (percussão).

O disco foi financiado com recursos dos próprios músicos, gravado no Amazonas Studio e prensado na gravadora Ariola.

Ele teve uma tiragem inicial de 2 mil cópias.

Realizado no Teatro Amazonas, o show de lançamento do disco contou com a presença de 830 pessoas na plateia e foi um tremendo sucesso, de crítica e de público.

A segunda apresentação do “Pró-Álcool” para a divulgação do disco ocorreu na Casa Ideal, em Educandos, mas o sucesso não foi o esperado em razão de ter ocorrido um racha na Banda da Bhaixa da Hégua, que era a banda onde o grupo tocava nos dias que antecediam o carnaval.

Em compensação, no lançamento do disco na quadra do GRES Mocidade Independente de Aparecida compareceu uma multidão estimada em 10 mil pessoas, com o “bolachão” se esgotando em menos de meia hora e os músicos ficando com cãibras na mão de tanto dar autógrafos.

O primeiro disco de vinil do “Pró-Álcool” se transformou em item de colecionador e até hoje tem gente que duvida da existência do mesmo.

Em 1997, por exigência das “cachorras” e dos fãs mais radicais, foi lançado o CD “Vozes da Mocidade”, sendo considerado oficialmente o primeiro disco independente de samba “made in Manaus”.

Durante a gravação do primeiro disco do “Pró-Álcool”, Marinho Lima havia se casado e estava morando em São Paulo, razão porque não foi incluída nenhuma de suas músicas naquele trabalho.


Marinho Lima, Cid Cabeça de Poeta, Arnaldo Marques, Ary Cachorro e Mário Toledo

No segundo disco, entretanto, já estavam selecionadas as suas músicas que seriam gravadas juntamente com as novas composições que o grupo vinha produzindo (naquela época, já em torno de 150 músicas inéditas).

Em razão da tragédia que foi a morte prematura de Marinho Lima na capital paulista, vítima de insuficiência renal, o grupo resolveu incluir no segundo disco o maior número possível de suas composições, objetivando fazer um registro definitivo e evitando, assim, que elas se perdessem na poeira do tempo por não terem sido gravadas.

Lançado em 2003, o segundo CD, intitulado “Vozes da Mocidade 2 - O Resgate” fazia parte do projeto Nossa Música, patrocinado pela Fundação Vila Lobos.

Como o disco só podia conter 13 músicas, o “Pró-Álcool” resolveu gravar 10 músicas de Marinho Lima e três de Cid Cabeça de Poeta, seu irmão e parceiro, esperando, com isso, deixar registrado para a posteridade uma parte importante da história do samba de Manaus.

Considerado um dos melhores nadadores da história do Amazonas, Kako Caminha foi outro que não testemunhou o sucesso planetário do grupo que ele próprio havia batizado.

Em 1985, após assistir a um jogo no Maracanã, Kako Caminha, que estava no Rio de Janeiro disputando o Troféu Brasil de Natação, resolveu comer um “kikão” na saída do estádio.

Infelizmente, o cachorro-quente estava contaminado pela bactéria clostridium botulinum.

O atleta já chegou a Manaus apresentando os sintomas de botulismo, entre eles distúrbios gastrointestinais, paralisia dos nervos cranianos e insuficiência respiratória.

Apesar de ter uma saúde de ferro, Kako Caminha morreu menos de 24 horas após a internação.


Roberto Caminha, pai de Kako, e o governador Omar Aziz

Em junho de 2010, o governador do Amazonas, Omar Aziz, entregou para a população o Parque Kako Caminha, mais uma obra do Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (Prosamim).


Situado entre as Ruas Kako Caminha e Av. Presidente Dutra, no bairro Santo Antônio, Zona Oeste, o parque possui equipamentos para lazer e recreação infantil, com quadras poliesportivas, calçadas em concreto, sinalização vertical e horizontal, além de pintura artística.

Desde 1987, o Campeonato Norte-Nordeste de Natação Infantil, para crianças de 9 a 12 anos, recebe o nome de Troféu Kako Caminha.

São pequenos gestos necessários para não deixar cair no esquecimento a importância histórica desse grande nadador amazonense.

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