A
grande maioria dos pesquisadores concorda que a primeira vez em que a
palavra “samba” apareceu em letra de forma, na imprensa
brasileira, foi no jornal satírico “O Carapuceiro”, editado no
Recife entre 1832 e 1842, por um religioso meio reacionário chamado
padre Lopes Gama.
Em
uma das edições do ano de 1838, o padre Gama se refere a “samba
d’almocreves”, classificando o estilo musical como coisa própria
da periferia, do meio rural (almocreve era o serviçal que se ocupava
em cuidar de mulas e burros), contrapondo-o ao que se cultivava nos
salões provincianos. Ali, ouviam-se e dançavam-se operetas, polcas,
valsas e o amaneirado lundu-canção.
Antes
disso, valendo-se da única forma jornalística conhecida, a tradição
oral, o ritmo que os africanos trouxeram nos navios negreiros foi
chamado por alguns de batuque. Mais acolá, acrescido dos chocalhos e
das maracas dos índios que se juntaram aos tambores vindos
d’além-mar, alguns outros ouviram dizer que a tal música teria o
nome de zambo.
Mas,
os descobridores deveriam ainda meter sua colher (ou suas violas?) no
guisado, transferindo para os trópicos a influência que os mouros
plantaram na península ibérica e a coisa poderia ser conhecida mais
simplesmente como zambra.
Os
escravos chamavam sua dança de samba, que significaria “umbigada”
ou “união do baixo ventre”, referindo-se àquilo que no Brasil
era designado, no século 16 e começo do século 17, como batuque,
englobando todos os ritmos e danças originários da África.
Pesquisadores
como Luís da Câmara Cascudo, Mário de Andrade, José Ramos
Tinhorão, Oneyda Alvarenga, José Muniz Júnior e outros semeiam
teses sobre a origem da palavra “samba” que variam de “divindade
angolana protetora de caçadores” a “culto à divindade através
da dança”,
Aceita
a palavra como definitiva, ela serviu de início para denominar
ritmos bastante diversificados em regiões distintas do Brasil onde
surgiria o samba-lenço, o samba-rural, o samba-de-roda, o samba-duro
e outros, até que o ritmo que lhe caracteriza hoje se fixou mais
especificamente no Rio de Janeiro, com alguma ramificação em São
Paulo e com representação mais tímida no restante do país.
O
que não impediu o samba de se transformar na identidade musical
brasileira pelo resto do mundo.
As
vertentes do samba
Embora
causando grandes divergências entre pesquisadores e autores sobre
suas origens, o samba inegavelmente tem suas raízes fincadas no
coração da Mãe África, onde se aleitou, encontrou as primeiras
forças, ouviu os primeiros sons e, como qualquer recém-nascido,
abriu os olhos para a vida.
Foi
lá no Continente Negro, onde a força mágica dos rituais
religiosos, o ritmo encantador de rústicos tambores, o canto forte e
uníssono de homens e mulheres que entoavam canções cujas origens
se perdiam na ancestralidade do tempo, onde ele efetivamente começou
a se formar e a ser formado.
O
nome escolhido para seu batismo varia de região para região, de
pesquisador para pesquisador, passando pela tradição oral que –
de boca em boca, de geração em geração – vai modificando,
amoldando palavras e designações, trocando significados,
diferenciando pronúncias, transformando o vocábulo, distorcendo a
palavra, que chega ao seu uso corrente muitas vezes completamente
diferente de sua forma original.
Qual
seria o ritmo ancestral do samba? Seria um só ou teria vários, um
para cada região? Os escravos que aqui aportaram eram de distintas
regiões africanas, o que justificaria a diversificação e as teses
de cada historiador.
De
qualquer forma, em uma coisa eles concordam: todos os termos
desaguaram na denominação genérica de batuque para a dança e o
ritmo com que os africanos “brincavam” nos terreiros das fazendas
em seus raríssimos momentos de lazer.
No
Brasil, portanto, o batuque é a célula-mãe da manifestação
musical popular mais importante do país e dele surgiram ramos,
afluentes, tendências, que se espalharam por todo o território.
Sofreram
modificações rítmicas, harmônicas e de conteúdo, situando-se no
ambiente rural ou no urbano, subdividindo-se, voltando a se
encontrar, tomando novos aspectos, dançantes, dramáticos, cantados,
improvisados, em forma de cortejos religiosos ou leigos, em salões e
em terreiros, em palcos de grandes teatros ou em fundos de quintais.
Sob os nomes mais diversos, ganharam estilos e andamentos próprios,
sotaques regionais, assumiram caráter romântico, jocoso, boêmio,
patriótico.
Centraram-se
em instrumentos de sons diferentes, alguns preferindo as cordas dos
violões, outros os foles das sanfonas, outros mais, a marcação
fundamental dos couros.
Como
rios que caminham para o mar, por mais meandros, meneios, cachoeiras
e remansos que criassem em seus percursos, o desaguar inevitável foi
– de afluente – no oceano maior chamado samba.
Oceano
que naturalmente tem suas praias, maiores e menores, chamadas
samba-canção, samba-enredo, bossa nova e tantas mais, cantadas em
prosa e verso por historiadores, pesquisadores, compositores,
testemunhas mais ou menos participantes da própria história.
Uma
história que começa no batuque e principia a terminar no samba.
Cidade
Nova, a Bahia no Rio
Demolição de cortiços para o alargamento da Rua da Carioca, em 1906
Na
Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro de hoje, entre a estação
da Estrada de Ferro Central do Brasil e o Trevo dos Pracinhas,
existiu a Cidade Nova. Constituiu-se ali importante grupamento
social, na forma definitiva que a cidade começou a assumir nos
últimos anos do século 19 e nos primeiros do século 20. Ganhou
importância na primeira metade do século 19 com o aterro das
vizinhanças do Canal do Mangue e com as facilidades fiscais para as
residências assobradadas nas ruas abertas pela Prefeitura.
A
Prefeitura foi forçada a agir assim pela chegada da Corte portuguesa
ao Rio de Janeiro, que abarrotou a cidade obrigando-a a se espraiar
rumo aos subúrbios. Mansões e bem-cuidadas chácaras testemunhavam
a qualidade de vida dos moradores, que, porém, nos meados do século,
se transferiram para a Zona Sul.
Com
isso, muitas das construções se tornaram moradias coletivas,
abrigando a população de baixa renda, constituindo juntamente com o
centro da cidade grande concentração habitacional operária.
Em
1872, o recenseamento apontava 26.592 moradores, muitos dos quais
negros, alguns ainda escravos e seguramente africanos.
No início do
século 20, começa a Reforma Pereira Passos que desmonta o sistema
habitacional do centro da cidade.
O
abrigo mais próximo é a Cidade Nova, cuja densidade populacional
cresce assustadoramente com a presença dos migrantes provindos da
Bahia, que para lá se transferem. Na união dos africanos com os
recém-chegados baianos a música surgiria naturalmente.
Lima
Barreto, em seu livro “Feiras e Mafuás”, acrescenta ainda a
presença de imigrantes italianos, que ele situa em um patamar
socioeconômico mais baixo ainda, mas que devem com certeza ter
contribuído com sua parcela nas festas e cantorias que a gente
humilde armava para esquecer a tristeza.
“No
começo do século” – dizia Lima Barreto – “era comum vê-la
[a Cidade Nova] representada nas revistas teatrais do Rocio como
sendo habitada, sobretudo, por pobre gente de cor na maioria dada a
malandragem. Mas era um exagero [...]. Nos pontos de bonde da Senador
Eusébio ou da Visconde de Itaúna já se viam napolitanas robustas
às dezenas, de grossos anelões de ouro nas orelhas, levando fardos
de costura à cabeça, e pequenos empregados públicos, e tipógrafos,
e caixeiros do atacado e do varejo. Ao cair da tarde vinham as moças
para a janela, e então as festinhas caseiras, típicas da época,
não tardavam a começar, animadas pelos pianistas amadores, que
sabiam de cor o ‘shotish’, a valsa e a polca da moda e aos
domingos brilhavam nos salões do Clube dos Aristocratas da Cidade
Nova”.
Este
era o ambiente onde o samba carioca começava a nascer, processo que
teria prosseguimento com os habitantes das favelas e posteriormente
com os compositores chamados urbanos, que dele tomariam conhecimento
e seriam atraídos por eventos como o animado carnaval que se
festejava na Praça Onze (de Junho), domínio da Cidade Nova.
Projetada
por Grandjean de Montigny, arquiteto que veio ao Brasil com a famosa
Missão Francesa, a partir da ocupação da Cidade Nova pela gente
humilde, a praça se tornaria um ponto de convergência desses novos
moradores, local de encontro de capoeiras, malandros, operários e
músicos de ranchos e blocos carnavalescos. Com a abertura da Avenida
Presidente Vargas rumo à Zona Norte do Rio de Janeiro, a Cidade Nova
desapareceu.
Favela:
baiana na revolução, carioca no Rio de Janeiro
Barraco no Arraial de Canudos, no Morro da Favela, sertão da Bahia
Em
algumas capitais da América do Sul a favela é conhecida como
Población Callampa, Villa Miseria e outros nomes que identificam
moradias precárias, definidas como “conjunto de habitações
populares toscamente construídas (normalmente em morros) e
desprovidas de recursos higiênicos”.
No
Brasil todos sabem do que se trata quando a palavra favela é
mencionada, poucos, porém, são os que conhecem a origem do termo e
como foi escolhido para designar lugares onde a população de baixa
renda se aglomera, morando sem pagar.
Arbusto
típico do sertão nordestino, o faveleiro, mais popularmente chamado
de favela, identificava também a elevação onde os seguidores de
Antônio Conselheiro construíram suas casas. Era o Morro da Favela,
no Arraial de Canudos, no sertão da Bahia, destruído pelo exército
brasileiro, como descreveu Euclides da Cunha em “Os Sertões”.
O
cerco ao Morro da Favela e a resistência aguerrida dos seguidores de
Antônio Conselheiro aos soldados, transformaram em dura e longa
campanha aquilo que se pensava ser fácil de resolver com meia dúzia
de tiros.
O
que não se imaginaria é que a Revolta de Canudos, um movimento de
cunho basicamente religioso no Nordeste, viesse influenciar social e
musicalmente o Rio de Janeiro, então capital da República, que se
preparava para passar por grande reforma urbanística.
O
engenheiro Pereira Passos, que ocuparia a Prefeitura carioca ao
nascer do século 20, rasgando avenidas, demolindo habitações
coletivas, transformando o núcleo central da cidade em polo
comercial e empurrando os menos favorecidos para a Zona Norte, foi,
em última análise e com todo o seu modernismo, o pai das favelas
cariocas.
Cortiços foram demolidos, empurrando seus moradores para os morros da cidade
Aquela
região era habitada principalmente pela colônia baiana que vivia no
Rio. As “tias” festeiras em seus casarões, reunindo os patrícios
nas “festas de santo” ou celebrações profanas, geralmente
obreiros humildes, mas cheios de musicalidade, dominavam o centro da
cidade, até as reformas exigirem suas saídas. A solução foi
procurar abrigo na Zona Norte e nos morros da região, onde os
primeiros barracões começaram a aparecer.
A
campanha de Canudos teve consequências. Não se fez apenas a guerra,
mas também o amor. Soldados acabaram por se unir a caboclas e voltar
com elas para o Rio de Janeiro. Muitos sobreviventes resolveram
recomeçar a vida na capital, e lá, a primeira orientação foi a
dos patrícios que já moravam na cidade, a maioria nos morros.
Os
novos vizinhos lembravam sempre suas origens e volta e meia estavam
falando no seu Morro da Favela e assim, sem se aperceberem, criaram a
denominação que se tornou genérica. Favela passou então a ser o
nome de todos os locais onde aquele tipo de habitação foi – por
força das circunstâncias – adotado.
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