sexta-feira, 29 de maio de 2015

Uma história que deu samba (1)


A grande maioria dos pesquisadores concorda que a primeira vez em que a palavra “samba” apareceu em letra de forma, na imprensa brasileira, foi no jornal satírico “O Carapuceiro”, editado no Recife entre 1832 e 1842, por um religioso meio reacionário chamado padre Lopes Gama.
Em uma das edições do ano de 1838, o padre Gama se refere a “samba d’almocreves”, classificando o estilo musical como coisa própria da periferia, do meio rural (almocreve era o serviçal que se ocupava em cuidar de mulas e burros), contrapondo-o ao que se cultivava nos salões provincianos. Ali, ouviam-se e dançavam-se operetas, polcas, valsas e o amaneirado lundu-canção.
Antes disso, valendo-se da única forma jornalística conhecida, a tradição oral, o ritmo que os africanos trouxeram nos navios negreiros foi chamado por alguns de batuque. Mais acolá, acrescido dos chocalhos e das maracas dos índios que se juntaram aos tambores vindos d’além-mar, alguns outros ouviram dizer que a tal música teria o nome de zambo.
Mas, os descobridores deveriam ainda meter sua colher (ou suas violas?) no guisado, transferindo para os trópicos a influência que os mouros plantaram na península ibérica e a coisa poderia ser conhecida mais simplesmente como zambra.
Os escravos chamavam sua dança de samba, que significaria “umbigada” ou “união do baixo ventre”, referindo-se àquilo que no Brasil era designado, no século 16 e começo do século 17, como batuque, englobando todos os ritmos e danças originários da África.
Pesquisadores como Luís da Câmara Cascudo, Mário de Andrade, José Ramos Tinhorão, Oneyda Alvarenga, José Muniz Júnior e outros semeiam teses sobre a origem da palavra “samba” que variam de “divindade angolana protetora de caçadores” a “culto à divindade através da dança”,
Aceita a palavra como definitiva, ela serviu de início para denominar ritmos bastante diversificados em regiões distintas do Brasil onde surgiria o samba-lenço, o samba-rural, o samba-de-roda, o samba-duro e outros, até que o ritmo que lhe caracteriza hoje se fixou mais especificamente no Rio de Janeiro, com alguma ramificação em São Paulo e com representação mais tímida no restante do país.
O que não impediu o samba de se transformar na identidade musical brasileira pelo resto do mundo.
As vertentes do samba

Embora causando grandes divergências entre pesquisadores e autores sobre suas origens, o samba inegavelmente tem suas raízes fincadas no coração da Mãe África, onde se aleitou, encontrou as primeiras forças, ouviu os primeiros sons e, como qualquer recém-nascido, abriu os olhos para a vida.
Foi lá no Continente Negro, onde a força mágica dos rituais religiosos, o ritmo encantador de rústicos tambores, o canto forte e uníssono de homens e mulheres que entoavam canções cujas origens se perdiam na ancestralidade do tempo, onde ele efetivamente começou a se formar e a ser formado.
O nome escolhido para seu batismo varia de região para região, de pesquisador para pesquisador, passando pela tradição oral que – de boca em boca, de geração em geração – vai modificando, amoldando palavras e designações, trocando significados, diferenciando pronúncias, transformando o vocábulo, distorcendo a palavra, que chega ao seu uso corrente muitas vezes completamente diferente de sua forma original.
Qual seria o ritmo ancestral do samba? Seria um só ou teria vários, um para cada região? Os escravos que aqui aportaram eram de distintas regiões africanas, o que justificaria a diversificação e as teses de cada historiador.
De qualquer forma, em uma coisa eles concordam: todos os termos desaguaram na denominação genérica de batuque para a dança e o ritmo com que os africanos “brincavam” nos terreiros das fazendas em seus raríssimos momentos de lazer.

No Brasil, portanto, o batuque é a célula-mãe da manifestação musical popular mais importante do país e dele surgiram ramos, afluentes, tendências, que se espalharam por todo o território.
Sofreram modificações rítmicas, harmônicas e de conteúdo, situando-se no ambiente rural ou no urbano, subdividindo-se, voltando a se encontrar, tomando novos aspectos, dançantes, dramáticos, cantados, improvisados, em forma de cortejos religiosos ou leigos, em salões e em terreiros, em palcos de grandes teatros ou em fundos de quintais. Sob os nomes mais diversos, ganharam estilos e andamentos próprios, sotaques regionais, assumiram caráter romântico, jocoso, boêmio, patriótico.
Centraram-se em instrumentos de sons diferentes, alguns preferindo as cordas dos violões, outros os foles das sanfonas, outros mais, a marcação fundamental dos couros.
Como rios que caminham para o mar, por mais meandros, meneios, cachoeiras e remansos que criassem em seus percursos, o desaguar inevitável foi – de afluente – no oceano maior chamado samba.
Oceano que naturalmente tem suas praias, maiores e menores, chamadas samba-canção, samba-enredo, bossa nova e tantas mais, cantadas em prosa e verso por historiadores, pesquisadores, compositores, testemunhas mais ou menos participantes da própria história.
Uma história que começa no batuque e principia a terminar no samba.
Cidade Nova, a Bahia no Rio

Demolição de cortiços para o alargamento da Rua da Carioca, em 1906
Na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro de hoje, entre a estação da Estrada de Ferro Central do Brasil e o Trevo dos Pracinhas, existiu a Cidade Nova. Constituiu-se ali importante grupamento social, na forma definitiva que a cidade começou a assumir nos últimos anos do século 19 e nos primeiros do século 20. Ganhou importância na primeira metade do século 19 com o aterro das vizinhanças do Canal do Mangue e com as facilidades fiscais para as residências assobradadas nas ruas abertas pela Prefeitura.
A Prefeitura foi forçada a agir assim pela chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, que abarrotou a cidade obrigando-a a se espraiar rumo aos subúrbios. Mansões e bem-cuidadas chácaras testemunhavam a qualidade de vida dos moradores, que, porém, nos meados do século, se transferiram para a Zona Sul.
Com isso, muitas das construções se tornaram moradias coletivas, abrigando a população de baixa renda, constituindo juntamente com o centro da cidade grande concentração habitacional operária.
Em 1872, o recenseamento apontava 26.592 moradores, muitos dos quais negros, alguns ainda escravos e seguramente africanos. 

No início do século 20, começa a Reforma Pereira Passos que desmonta o sistema habitacional do centro da cidade.
O abrigo mais próximo é a Cidade Nova, cuja densidade populacional cresce assustadoramente com a presença dos migrantes provindos da Bahia, que para lá se transferem. Na união dos africanos com os recém-chegados baianos a música surgiria naturalmente.
Lima Barreto, em seu livro “Feiras e Mafuás”, acrescenta ainda a presença de imigrantes italianos, que ele situa em um patamar socioeconômico mais baixo ainda, mas que devem com certeza ter contribuído com sua parcela nas festas e cantorias que a gente humilde armava para esquecer a tristeza.
“No começo do século” – dizia Lima Barreto – “era comum vê-la [a Cidade Nova] representada nas revistas teatrais do Rocio como sendo habitada, sobretudo, por pobre gente de cor na maioria dada a malandragem. Mas era um exagero [...]. Nos pontos de bonde da Senador Eusébio ou da Visconde de Itaúna já se viam napolitanas robustas às dezenas, de grossos anelões de ouro nas orelhas, levando fardos de costura à cabeça, e pequenos empregados públicos, e tipógrafos, e caixeiros do atacado e do varejo. Ao cair da tarde vinham as moças para a janela, e então as festinhas caseiras, típicas da época, não tardavam a começar, animadas pelos pianistas amadores, que sabiam de cor o ‘shotish’, a valsa e a polca da moda e aos domingos brilhavam nos salões do Clube dos Aristocratas da Cidade Nova”.
Este era o ambiente onde o samba carioca começava a nascer, processo que teria prosseguimento com os habitantes das favelas e posteriormente com os compositores chamados urbanos, que dele tomariam conhecimento e seriam atraídos por eventos como o animado carnaval que se festejava na Praça Onze (de Junho), domínio da Cidade Nova.
Projetada por Grandjean de Montigny, arquiteto que veio ao Brasil com a famosa Missão Francesa, a partir da ocupação da Cidade Nova pela gente humilde, a praça se tornaria um ponto de convergência desses novos moradores, local de encontro de capoeiras, malandros, operários e músicos de ranchos e blocos carnavalescos. Com a abertura da Avenida Presidente Vargas rumo à Zona Norte do Rio de Janeiro, a Cidade Nova desapareceu.
Favela: baiana na revolução, carioca no Rio de Janeiro

Barraco no Arraial de Canudos, no Morro da Favela, sertão da Bahia
Em algumas capitais da América do Sul a favela é conhecida como Población Callampa, Villa Miseria e outros nomes que identificam moradias precárias, definidas como “conjunto de habitações populares toscamente construídas (normalmente em morros) e desprovidas de recursos higiênicos”.
No Brasil todos sabem do que se trata quando a palavra favela é mencionada, poucos, porém, são os que conhecem a origem do termo e como foi escolhido para designar lugares onde a população de baixa renda se aglomera, morando sem pagar.
Arbusto típico do sertão nordestino, o faveleiro, mais popularmente chamado de favela, identificava também a elevação onde os seguidores de Antônio Conselheiro construíram suas casas. Era o Morro da Favela, no Arraial de Canudos, no sertão da Bahia, destruído pelo exército brasileiro, como descreveu Euclides da Cunha em “Os Sertões”.
O cerco ao Morro da Favela e a resistência aguerrida dos seguidores de Antônio Conselheiro aos soldados, transformaram em dura e longa campanha aquilo que se pensava ser fácil de resolver com meia dúzia de tiros.
O que não se imaginaria é que a Revolta de Canudos, um movimento de cunho basicamente religioso no Nordeste, viesse influenciar social e musicalmente o Rio de Janeiro, então capital da República, que se preparava para passar por grande reforma urbanística.
O engenheiro Pereira Passos, que ocuparia a Prefeitura carioca ao nascer do século 20, rasgando avenidas, demolindo habitações coletivas, transformando o núcleo central da cidade em polo comercial e empurrando os menos favorecidos para a Zona Norte, foi, em última análise e com todo o seu modernismo, o pai das favelas cariocas.

Cortiços foram demolidos, empurrando seus moradores para os morros da cidade
Aquela região era habitada principalmente pela colônia baiana que vivia no Rio. As “tias” festeiras em seus casarões, reunindo os patrícios nas “festas de santo” ou celebrações profanas, geralmente obreiros humildes, mas cheios de musicalidade, dominavam o centro da cidade, até as reformas exigirem suas saídas. A solução foi procurar abrigo na Zona Norte e nos morros da região, onde os primeiros barracões começaram a aparecer.
A campanha de Canudos teve consequências. Não se fez apenas a guerra, mas também o amor. Soldados acabaram por se unir a caboclas e voltar com elas para o Rio de Janeiro. Muitos sobreviventes resolveram recomeçar a vida na capital, e lá, a primeira orientação foi a dos patrícios que já moravam na cidade, a maioria nos morros.
Os novos vizinhos lembravam sempre suas origens e volta e meia estavam falando no seu Morro da Favela e assim, sem se aperceberem, criaram a denominação que se tornou genérica. Favela passou então a ser o nome de todos os locais onde aquele tipo de habitação foi – por força das circunstâncias – adotado.

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