sexta-feira, 29 de maio de 2015

Uma história que deu samba (12)


“No livro de nossa história / Tem conquistas a valer / Juro que não posso me lembrar / Se for falar da Portela / Hoje não vou terminar” (Monarco).
Todos os portelenses conhecem os versos de Monarco exaltando as conquistas do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela.
No subúrbio de Madureira, qualquer moleque assobia pelas calçadas, enquanto canta mentalmente o samba de Chico Santana, “Portela é despida de vaidade/ Vitória, para Portela, é banalidade”.
E desde há muitos anos, outro velho samba, caído no domínio público, de autor já esquecido, convoca os batuqueiros: “Levanta cedo, trata de te preparar/ Vamos para a Portela/ Que o reino do samba é lá”.
Quando a imponente águia-símbolo da escola azul-e-branco – as cores do manto de N. Sª. da Conceição, sua madrinha – abre as asas sobre a pista do desfile, o sortilégio se refaz a cada ano.
O surdo de marcação bate, a bateria vira, vem a réplica do surdo de resposta e, em alguma nuvem confortável, sisudos senhores se ajeitam e tratam de olhar com atenção (e, obviamente, criticar) o que os meninos de hoje estão fazendo com a brincadeira que eles criaram para animar os domingos de Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro e toda a Madureira.
Na metade dos anos 20, sob uma frondosa mangueira, na Rua Joaquim Teixeira, no subúrbio carioca, três amigos reuniam-se para conversar. O assunto era sempre o mesmo.
Os blocos Quem Fala de Nós Come Mosca e Baianinhas de Oswaldo Cruz, nos quais eles e outros amigos se divertiam, já não existiam mais. O que fazer para solucionar o problema, que afinal era de todos?
Antônio da Silva Caetano, dentre os três, era o mais bem preparado intelectualmente. Cursara o secundário no Colégio Salesiano, onde começou como corneteiro na banda, passou para o saxofone, depois para o pistão, fixando-se no violão.
Seu xará, Antônio Rufino dos Reis, viera de Minas Gerais, já tendo tomado gosto pela dança e pela música. Chegara quase menino ao Rio de Janeiro e, sem estudo, iniciou-se como servente de pedreiro, morando em quarto alugado e tomando refeições, na casa de Paulo da Portela, de quem se fez muito amigo.
Paulo, o mais elegante e falante do trio, lustrador de móveis por profissão e líder nato, era quem mais se preocupava em criar algum tipo de diversão para a turma, órfãos que estavam, sem os blocos carnavalescos.

Paulo, Caetano e Rufino: fundadores da Portela.
A união dos três talentos – a capacidade de idealizar e criar de Caetano, a mineirice de Rufino, responsável pela administração do dinheiro do empreendimento, e a habilidade de Paulo, relações-públicas nato e perfeito, quando ainda não existia a profissão ou o termo – foi o fator que determinou o sucesso da grande ideia: fundar uma escola de samba.
Em 11 de abril de 1926 foi registrado o documento que oficializava o Conjunto Carnavalesco Escola Samba de Oswaldo Cruz, constituído por Paulo da Portela, Antônio da Silva Caetano, Antônio Rufino dos Reis, Álvaro Sales, José da Costa, Galdino, Claudionor, Manoel Bam-Bam-Bam Gonçalves, Antônio Portugal, Cláudio Bernardo da Costa, Angelino Poró Vieira e Candinho, entre outros.
Quando o mangueirense Zé Espinguela, em 1929, promoveu um célebre concurso para escolher “o melhor samba”, o Conjunto de Oswaldo Cruz venceu com uma composição de Heitor dos Prazeres.
A presença dele no grupo incomodava alguns, por ser Heitor “gente nova na escola, vindo do centro da cidade”, e por ter, pouco depois, conseguido mudar o nome da agremiação para Quem Nos Faz É O Capricho.
Em 1930, por causa de uma disputa de autoria, abandonaria o grupo, após ter sido agredido gravemente por Manoel Bam-Bam-Bam, que tomou partido de Rufino, autor de “Vai, Mesmo”, samba do qual Heitor se apossou e gravou.
Mas a futura grande escola ainda dava passos nada largos.
Instalada no nº 412 da Estrada do Portela, não tinha como pagar os aluguéis para o comerciante português Sérgio Hermógenes Alves, considerado pelos veteranos o verdadeiro patrono da Escola. 
Ele gostava tanto do pessoal que “se esquecia” de cobrar, ou então se limitava a receber em serviços: alguém batia bumbo na porta de seu armazém, chamando a freguesia.
Em 1931, já como Vai Como Pode, Rufino contava as dificuldades: “Descemos do trem na Central e fomos desfilando até a Praça Mauá, dali viemos pela Rua Larga (Marechal Floriano) para a Praça Onze. Chegamos às duas e meia da manhã. Demos uma volta e viemos embora para a Central. Aí não cantamos samba, viemos só no assovio e no arrastar da sandália”.

Alcides Dias Lopes, o Malandro Histórico
Paulo da Portela era sempre quem puxava o samba, ajudado por João da Gente e Alcides Lopes, o “Malandro Histórico”.
Até 1935, a Vai Como Pode sempre fez bonito nos desfiles, ganhando naquele ano o primeiro campeonato.
Foi quando, em 1º de março, o delegado Dulcídio Gonçalves se negou a reconhecer a agremiação com “aquele nome chulo” e, de certa forma, impondo, sugeriu que o novo nome acompanhasse o endereço. Surgiu, então, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela.
No ano seguinte, ocorre uma dissidência entre Paulo da Portela e Antônio Caetano, tendo o segundo se afastado da Escola. Mesmo com a forte liderança de Paulo, a Portela se ressentiu da ausência de Caetano e ficou em terceiro lugar.
Em, 1937, ano da eleição de Paulo da Portela como Cidadão Samba do Rio de Janeiro, foi seu título que conseguiu levar a Escola a um vice-campeonato. 
Sem tempo, dinheiro e em crise interna, e Rufino também se desentendendo com Paulo, a Portela mal se armou com o enredo “O Carnaval”, mas a forte presença do Cidadão Samba à frente influiu na decisão dos jurados.
Em 1938, não houve julgamento e, em 1939, a Portela foi campeã com o enredo “Teste do Samba”.

No ano seguinte, ficou em quinto lugar e velhas inimizades determinaram a saída de Paulo da Portela da Escola em 1941.
Ele e Heitor dos Prazeres estavam em São Paulo participando de uma promoção carnavalesca e chegaram, em cima da hora, para desfilar na Portela. Como não estavam vestidos de azul e branco, o mestre-sala Manoel Bam-Bam-Bam, que mantinha a velha rixa com Heitor, proibiu que desfilassem.
Paulo retirou-se e nunca mais voltou à Portela, embora o incidente não impedisse que a Portela fosse campeã.
A escrita de campeã absoluta do carnaval carioca continuou nos sete anos seguintes, vencendo sempre, até ter a hegemonia quebrada pela grande rival vizinha, a Império Serrano, também de Madureira, em 1948.
A Portela se tornara realmente importante. Paulo morreria em 1949, coberto de homenagens pela Escola que fundara.
Natalino José do Nascimento, o lendário Natal da Portela, já era o destacado patrono e iniciava a construção do, talvez, maior patrimônio de todas as escolas de samba.

Inovando sempre, buscando fórmulas para superar as outras escolas, abrigando uma invejável Ala de Compositores – na qual, em breve, despontaria um menino chamado Paulinho da Viola, que se tornaria sinônimo de Portela – a Azul-e-Branco desperta polêmica em 1964, ao abrir o desfile com um grupo de violinistas encasacados, no enredo “O Segundo Casamento de D. Pedro II”.
Em 1966, o próprio Paulinho, na única incursão no gênero, faz o samba-enredo “Memórias de Um Sargento de Milícias” e leva a Escola a ganhar mais um campeonato.
Em 1970, a Portela encerra a década novamente como campeã, a velha águia alçando voo com mais um título, que encerrava um ciclo de vitórias continuadas.

Estamos em um quintal de subúrbio em Madureira. O local é bem espaçoso e algumas árvores oferecem sombra, nas manhãs de domingo, dia da reunião habitual. Aos poucos, os convidados vão chegando e se ajeitando nas mesas e cadeiras.
As roupas, sempre em tons de azul e branco. O cumprimento à dona da casa, Doca, famosa pastora da Portela, é obrigatório. A reunião semanal da Velha Guarda da Portela celebra um rito de preservação cultural.
Monarco fere as cordas do cavaquinho, afinando um clássico ré-sol-si-mi. Casquinha confere o tantã, enquanto Cabelinho aperta as tarraxas do surdo. Argemiro abre a cervejinha para limpar a garganta. Alberto Lonato chega, veteraníssimo, saudando a todos.
Aos poucos, o time está completo, ao redor de mesas sob as árvores. Sempre na companhia de Eunice, Doca já abandonou a cozinha, e assim começa uma verdadeira festa da música popular brasileira.
O “pagode”, como os velhos sambistas sabem (uma reunião de amigos festejando o samba, não um gênero, como se convencionou, recentemente), pega fogo.
O que vale para aqueles senhores, guardiães de uma cultura ameaçada, é a beleza e a qualidade dos sambas que cantam, a maioria da Portela, mas nada impede que Cartola, Silas de Oliveira, Anescar do Salgueiro e Martinho da Vila sejam lembrados.
O timbre agudo da voz das pastoras destaca-se dos graves masculinos. Nos rostos, a alegria de sempre, da celebração da vida, o prazer de exibir talentos na criação de sambas memoráveis, os próprios e os de seus majestosos pares.
Quando alguém lembra Paulinho da Viola, é o paraíso. Foi ele quem resgatou o grupo de veteranos, produziu seu disco, passou a convidá-lo para participar de alguns shows e até para a Europa já o levou.

A foto, de 1970, contém a saudade de alguns integrantes da Velha Guarda da Portela, que já se foram. Feita na ocasião da gravação do disco, quando os ensaios aconteciam na casa de Iara, no subúrbio de Oswaldo Cruz.
Um jovem Paulinho da Viola, à esquerda, observa o grupo. Em pé, ao seu lado: Aniceto, Alberto Lonato, Chico Santana, atrás dele, encoberto, Antônio Caetano, e também Armando Santos, Vicentina (quem já não tinha provado de seu famoso feijão, na Portela?), o sobrinho dela e Manacéa. Agachados estão Casquinha, o neto de Iara, a própria Iara, Monarco, Alcides Lopes (o Malandro Histórico), Cláudio e Miginha.

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