sexta-feira, 29 de maio de 2015

Uma história que deu samba (10)


Ismael Silva, Mário Lago, Cartola e Nelson Cavaquinho
“Ontem, com alguns amigos – Prudente, Sérgio – passei uma noite que quase ficou de manhã a ouvir Pixinguinha, um mulato, tocar em flauta coisas suas de carnaval, Donga, outro mulato, no violão, e o preto bem preto Patrício a cantar. Grande noite cariocamente brasileira.”
O autor do relato se assina Gilberto.
A noitada foi no Rio de Janeiro, em 1926, em um café na Rua do Catete, fechado para a ocasião.
Prudente e Sérgio eram os jovens intelectuais Pedro Dantas Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Hollanda. Donga é o autor de “Pelo Telefone”. Patrício é o cantor Patrício Teixeira. Pixinguinha é Pixinguinha.
E quem assina o relato é o futuro autor de “Casa-Grande e Senzala”, Gilberto Freyre, recém-chegado ao Rio.
Querendo conhecer a música popular carioca, Gilberto foi levado ao encontro por Sérgio Buarque e Pedro Dantas, que providenciaram ainda as presenças dos músicos Sebastião Cirino e Nelson Alves.
Heitor Villa-Lobos também é citado posteriormente no texto como estando presente.
O interesse da intelectualidade pelo samba foi constante nos anos 20. Gilberto Freyre confirmou algumas teses sobre a cultura brasileira naquele encontro, por ele várias vezes mencionado.
Villa-Lobos não escondia o encantamento pela música popular, desfilando em cordões carnavalescos, visitando escolas de samba, ouvindo compositores populares.
Foi o principal articulador das gravações feitas pelo maestro Leopold Stokowski no Brasil, registrando música popular, depois lançada em disco nos Estados Unidos.
Manuel Bandeira também se chegou aos poetas do povo, consciente do valor que a arte instintiva ocupa na cultura.
Apresentado ao compositor Sinhô, ficou fascinado por sua personalidade.
Bandeira analisaria o compositor em três crônicas, “Na Câmara-Ardente de José do Patrocínio Filho”, “O Enterro de Sinhô” e “Sambistas”.
Em menos de vinte anos o samba saía das garras da repressão e se transformava em símbolo da música brasileira.

Dona Zica e Cartola
“Chega de demanda / Chega / Com esse time temos que ganhar / Somos da Estação Primeira / Salve o Morro da Mangueira”.
Aborrecido com a discriminação (justa) que os integrantes dos demais blocos de carnaval da Mangueira tinham com seu Bloco dos Arengueiros, o compositor Cartola descia as ladeiras, enquanto compunha esse verdadeiro samba-manifesto, que conseguiu o milagre de unir todos os sambistas do morro em torno de uma só bandeira, fazendo surgir a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.
Os anos 20 chegavam ao fim, o morro estava lotado de famílias de trabalhadores que, procurando moradia barata, escolheram a colina famosa.
A mesma que já fora chamada de “Petrópolis dos pobres”, no início do século, pelos bons ares que lá se respirava.
O Velho Morro dos Telégrafos começou a ser habitado pela gente humilde, que erguia suas casas entre as mangueiras naturais, subindo as construções pelos lados norte e sul, até se encontrarem no topo, por volta de 1919.
Gente humilde, mas festeira, e se contavam por lá os blocos carnavalescos dos Guerreiros das Montanhas, Triunfos da Mangueira, Pérolas do Egito, Siri Com Arroz, Mestre Candinho, todos eles mantendo boas relações com os ranchos Pingo do Amor e Príncipe das Matas.
Foi então que apareceu o tal de Arengueiros, bloco da rapaziada braba, que saía para fazer arruaça e provocar confusão.
Era natural, portanto, que sofressem uma discriminação crescente dos demais moradores.

Paulinho da Viola, Aracy de Almeida, Albino Pinheiro, Carlos Cachaça, Cartola e Clementina de Jesus
Porém, naquele ano de 1929, um garoto de menos de 20 anos percebeu que seu amor pelo morro e pelo samba eram exatamente iguais. Que acabara de surgir no bairro do Estácio de Sá um movimento novo chamado “escola de samba”, uma grande ideia. Que os melhores batuqueiros eram os Arengueiros, mas que, sem a ajuda dos outros blocos, nada poderiam fazer. Que eles tinham de se regenerar e atrair os outros blocos para fundar sua própria “escola de samba”.
O próprio Cartola conta como foi:
“Foi na casa do seu Euclides (Euclides Roberto dos Santos), no número 21 do Buraco Quente, que a gente se reuniu. Estávamos lá, eu, o Satur (Saturnino Gonçalves), o Zé Espinguela (José Gomes da Costa), o Abelardo da Bolinha, o Pedro Caim e o Massu (Marcelino José Claudino). Resolvemos nos organizar.
– Vamos fazer uma coisa séria?
– Vamos!
Não tínhamos nada. Dançar e ensaiar era na rua. Arranjamos uma casa, mas no início só apareciam umas trinta pessoas. No ano seguinte organizamos em definitivo a Estação Primeira de Mangueira. Com esse nome, por ser a primeira estação da Central do Brasil que tinha samba. Com as cores verde e rosa que eu escolhi por serem do rancho Arrepiados, que eu frequentava com meu pai, quando era menino nas Laranjeiras. Aí já tínhamos local para ensaiar e o pessoal foi se chegando aos poucos.
Os Arengueiros, os que não prestavam, começaram a impor respeito e organização. Saímos no ano seguinte, ainda com pouca gente, mas já representando o Morro. Fomos disputar com o Estácio, com a Favela. Foi então que fiz o samba “Chega De Demanda” e os demais blocos foram se chegando. O amor ao morro falou mais alto. Convencidos que estávamos mudados, todos se uniram conosco, era o nome da Mangueira que estava em jogo. Acabaram-se os bloquinhos, fez-se a junção geral. Nasceu a poderosa Estação Primeira de Mangueira”.

Bloco dos Arengueiros, criado em 1923, deu origem a Estação Primeira da Mangueira
Na valentia no morro da Mangueira, Chico Porrão era destaque. Forte como um touro, não enjeitava parada, além de ser grande figura do Bloco dos Arengueiros. “Brigava bem de pau, mas preferia navalha”, contava Cartola.
Quando resolveu tomar juízo (como todos os Arengueiros), acabou sócio número 1 da Mangueira. Durante muitos anos, ele teve importante atuação como dirigente da escola.
Cartola também disse que não adiantara nada o escrivão anotar Carlos Moreira de Castro na certidão de um de seus melhores amigos de infância.
O pai, Carlos Moreira de Castro, e a mãe – rainha sem nunca ter coroa – Inês de Castro, bem que imaginaram uma profissão para o filho: médico, advogado ou diplomata. 
Local do nascimento? Morro da Mangueira. Resultaria em quê? Carlos Cachaça, poeta maior da nação mangueirense.

A Mangueira quer as glórias pioneiras de ser a primeira escola a desfilar com figuras de destaque e a primeira campeã dos desfiles a apresentar samba-enredo antes das demais. 
Tais itens são controversos, nenhum podendo ser confirmado historicamente. 
Aquele que mais se aproxima da verdade – e não é favorável aos mangueirense – é o da criação do samba-enredo.
Em 1933, a Estação Primeira desfilou com um samba de Carlos Cachaça, “Homenagem”, focalizando poetas brasileiros, entre eles o baiano Castro Alves.
O tema do enredo era a Bahia, e como o samba já estava pronto – não havia tempo para compor outro, exclusivo para o desfile –, foi adotado pela escola como solução.
No mesmo ano, a Escola de Samba Unidos da Tijuca desfilou com o enredo “O Mundo do Samba”.
Por obedecer o regulamento, que pedia três sambas inéditos sobre o tema, ganhou – segundo a imprensa da época – todas as honras de ter inventado o samba-enredo, que não é outra coisa senão um samba de acordo com o enredo.

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