sexta-feira, 29 de maio de 2015

Uma história que deu samba (13)


Em uma das reuniões preparatórias de fundação de uma nova escola de samba, um sambista sugeriu o nome: Catedráticos do Salgueiro. Do alto de sua sabedoria, o compositor Noel Rosa de Oliveira contestou: “Não dá. Esse nome vai destroncar a língua do pessoal do morro. Proponho Acadêmicos do Salgueiro”. Estava batizada a escola.
Assumido no desfile de 1958, quando Nelson Andrade sintetizou no slogan “Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente!”, o destino do Salgueiro ficou evidente já em seu surgimento.
Ao contrário da maioria, oriunda de blocos, a Acadêmicos é fruto da união de três pequenas escolas do morro do Salgueiro.
Na primeira metade dos anos 30, os foliões de lá se dividiam entre as escolas de samba Azul e Branco, Unidos do Salgueiro e Depois Eu Digo.
As três escolas eram patrocinadas, de forma igualitária, pelo industrial Antônio Almeida Valente de Pinto, que assinava grandes quantias nos Livros de Ouro de cada uma, chegando mesmo a doar a sede do Bloco Verde e Branco (que passaria a ser a Depois Eu Digo).
O presidente da Azul e Branco era o português Eduardo Teixeira e os principais destaques eram o diretor de harmonia, o compositor Antenor Gargalhada (Antenor Santíssimo de Araújo), e o sambista Paolino Santoro, que todos conheciam como Italianinho do Salgueiro.
A ala de baianas da Escola já era prestigiada e veio depois a enriquecer igual setor da Acadêmicos do Salgueiro.

Cidadão Samba de 1938, Antenor tinha voz possante, o mesmo acontecendo com o Italianinho, famosos por serem ouvidos no morro inteiro, quando abriam a garganta.
Embora não tivesse visto a Acadêmicos do Salgueiro nascer – morreu em 17 de janeiro de 1941 –, Antenor Gargalhada é reverenciado como o primeiro grande sambista salgueirense.
A Azul e Branco tem um dos mais bonitos episódios da história do samba.
No carnaval de 1947, pouco antes do desfile, soube-se que a porta-bandeira Ceci não podia comparecer. Desesperado, um dos diretores, seu Neca da Baiana, lembrou de Finoca, que desde menina saía na Escola. Foi busca-la na Ala dos Lordes e ela, apesar de grávida, não hesitou em tornar a bandeira e representar a agremiação, desfilando como se deve.
Tudo ia bem, até que, em um volteio mais rápido, a porta-bandeira teve de se apoiar no mestre-sala Ranulfo. Ela ainda tentou prosseguir, mas foi impossível. Hoje, Adelaidinha, que nasceu naquele momento, em pleno carnaval, é uma das passistas do Salgueiro, na qual desfila ao lado de... Finoca, é claro.
Lá no alto do morro, no Terreiro Grande, D. Elvira Arantes, Anacleto Português e seu Amaro adotaram as cores azul e rosa na fundação da Escola de Samba Unidos do Salgueiro.
Em seguida, uma figura imensa, um homem enorme e simpático, sorridente e comunicativo, chega ao morro e adere ao grupo.

Líder nato, usando calças sujas cujas bocas cobriam os sapatos, ganha logo o apelido que faria famoso: Casemiro Calça Larga (Joaquim Casemiro).
Ele organizava festas, ensaios, os conhecidos piqueniques na ilha de Paquetá, bailes animados e rodas de samba.
Partideiro de responsa e grande improvisador, Casemiro Calça Larga era respeitado por todos.
A mais fraca das três era a Depois Eu Digo, oriunda de um bloco de mesmo nome.
Seus sambistas, em menor número, ganhavam em qualidades dos das vizinhas: Servan Heitor de Carvalho, Pedro Ceciliano, o Peru, Paulino de Oliveira, Carivaldo Mota, João Sete, Olímpio Correia da Silva, Mané Macaco, além de outros.
A exemplo das coirmãs do morro, a Depois Eu Digo não conseguia se destacar. Se uma era forte na bateria, outra tinha melhores compositores e a terceira possuía excelentes passistas. Com os talentos diluídos, o morro do Salgueiro estava enfraquecido.

Foi quando, em 1953, Geraldo Babão convocou em samba todos os batuqueiros.
As baterias desceram unidas, arrastando o povo para a Praça Saenz Peña, numa soma de cores e bandeiras, o estopim da fusão.
Após várias reuniões – Calça Larga, a princípio, não aderiu, mas reconciliou-se depois –, nome e cores escolhidos, nasceu glorioso, a 3 de abril de 1953, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro.
O historiador e escritor Haroldo Costa sabe a história do Salgueiro em todos os seus capítulos. É parte de muitos deles. De ver, ouvir, participar. E de contar.
Histórias saborosas, como a da busca desesperada de doações que possibilitassem o desfile, com Mané Macaco e Peru passando o Livro de Ouro até para o presidente Getúlio Vargas (que assinou) e para as mulheres do Mangue, a zona do meretrício (que contribuiriam, desde que a Escola desfilasse para elas).
Compromisso assumido, dinheiro em caixa, no domingo de carnaval, com a desculpa de cortar caminho rumo à Praça Onze, a dupla de sambistas foi conduzindo, por aqui e por ali, os componentes, que, ao perceberem, estavam na Rua Carmo Neto, no coração da zona, com o mulherio aplaudindo e sambando descontraidamente, em “trajes de trabalho”, ou seja, quase nenhum.
Em 1956, o Salgueiro teve seu samba-enredo, “Brasil, Fonte Das Artes”, de Djalma Sabiá, Caxiné e Nilo Moreira, gravado por Emilinha Borba. Era a primeira vez que uma cantora profissional gravava um samba-enredo, que acabou sendo tema musical na recepção à Seleção Brasileira, campeã mundial de futebol em 1958.
No mesmo ano, também pela primeira vez, uma escola de samba gravava um disco, cabendo a honraria ao Salgueiro, pelo selo Todamérica.
“Navio Negreiro” foi o enredo de 1957, com samba de Djalma Sabiá e Amado Régis.
Em 1958, surge o lema salgueirense, “Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente”, abrindo o desfile do enredo “Exaltação aos Fuzileiros Navais”, samba de Djalma Sabiá, com Carivaldo Mota e Graciano Campos.
As inovações começam em 1959, com o casal Marie Louise e Dirceu Nery, responsáveis pelos figurinos sobre Debret, no enredo “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, que rendeu à Escola o segundo lugar.

No ano seguinte, Fernando Pamplona, o figurinista Arlindo Rodrigues (foto) e o aderecista Nilton de Sá completam o chamado quinteto infernal do Salgueiro.
Em 1960, o enredo era “Quilombo dos Palmares”, com samba de Noel Rosa de Oliveira e Nescarzinho. O Salgueiro foi para a avenida como favorito, desfilando de forma a modificar a estética carnavalesca das escolas de samba.
O júri deu-lhe um frustrante terceiro lugar, mas o concurso foi anulado e as cinco primeiras colocadas foram consideradas campeãs. Na garganta dos salgueirenses ficou um gosto de ganhou-mas-não-levou.
Em 1961, com o enredo “Vida e Obra de Aleijadinho”, desfilava pela primeira vez uma jovem de presença marcante, chamada Isabel Valença.
Geraldo Babão fez um grande samba para o carnaval de 1962, intitulado “O Descobrimento Do Brasil”, que ajudou a Escola a chegar perto da vitória, ficando de novo em terceiro lugar.
Mesmo com título dividido em 1960, os salgueirenses consideram que a Escola foi campeã pela primeira vez em 1963, o ano de “Chica da Silva”. O belíssimo samba-enredo de Nescarzinho e Noel Rosa de Oliveira musicou o desfile perfeito.

Haroldo Costa conta: “Quem vinha puxando o samba era o próprio Noel Rosa. A bateria de 200 homens sacudia o povo nas arquibancadas (...) a ala dos importantes representava 12 pares de nobres, dançando uma polca ao ritmo do samba, coreografada por Mercedes Batista (...) O inegável é que o impacto foi irresistível. Não bastasse tudo isso, ainda tinha Paula em momento de esplendor, sacudindo o colo farto, balançando os ombros, o público aplaudindo de pé (...) Casemiro Calça Larga rodopiava seus cento e tantos quilos com a leveza de um menino, orientando alas, apontando passistas como Narcisa, Roxinha e Gargalhada, incentivando as baianas, empurrando a escola para a vitória que se desenhava inteira e total, no impressionante ritmo mantido pela bateria sob o comando de Tião da Alda”.
Isabel Valença era uma rainha na luxuosíssima fantasia de Chica da Silva. Tornou-se símbolo do Salgueiro, que chegou ao título à frente da Mangueira e do Império Serrano.
Virou moda ser salgueirense e, em 1964, o enredo “Chico-Rei” conquistou o segundo lugar.
Em 1965, ano do IV Centenário do Rio de Janeiro, o enredo foi “História do Carnaval Carioca – Eneida”, homenagem à cronista paraense, grande carnavalesca.
O samba de Geraldo Babão, a presença eletrizante das Irmãs Marinho, a majestade de Isabel Valença, o final saudando todas as escolas com suas bandeiras, transformaram-se no segundo campeonato do Salgueiro, que a partir de então foi reconhecido oficialmente como grande escola.
Ela fez outros desfiles sensacionais – “Dona Beja, Feiticeira do Araxá”, “Bahia de Todos os Deuses” e “Rei da França na Ilha da Assombração”, entre outros –, sempre dentro de sua filosofia de não quer ser nem pior, nem melhor: apenas uma escola (e que escola!) diferente.
Desde os primeiros tempos, quando ainda estava pulverizada em três pequenas escolas, o Salgueiro contou com compositores da melhor qualidade. Iniciada por Antenor Gargalhada – que um dia não deixou Noel Rosa sem resposta (Noel fez um samba convidando Mangueira, Favela e Estácio para acordar o Salgueiro. Gargalhada respondeu cantando: “O Salgueiro não está adormecido, /quem é a Vila pra nos acordar?”) – a dinastia teve seguidores, com igual valor e talento, nas várias gerações futuras.
Noel Rosa de Oliveira, Bala (João Nicolau Carneiro Filho), Carivaldo Mota, Nescarzinho do Salgueiro, Djalma Sabiá, Zuzuca, Caxiné, Manoel Rosa e muitos outros, em toda a história da Escola, foram dignos herdeiros de Gargalhada.

Mas nenhum deles como Geraldo Soares Carvalho, o Geraldo Babão. 
Ele nasceu em 1926, no Terreiro Grande, um dos pontos mais conhecidos do Morro do Salgueiro. Tornou-se compositor de melodias inesquecíveis e originais.
Isso por um simples detalhe: enquanto os demais autores compõem seus sambas com harmonia em cavaco ou violão, Geraldo tirava notas musicais da flauta, o que lhe permitia nuances melódicas únicas.
Tocava horas a fio pelas vielas do morro, e a saliva que saía da boca para não machucar os lábios em contato com a flauta lhe rendeu o apelido que o consagraria no carnaval carioca: Geraldo Babão.
O sambista representou para o Salgueiro o unificador que Cartola foi para a Mangueira.  
Em 1953, depois que as três escolas do morro do Salgueiro não obtiveram bom resultado no carnaval, Geraldo Babão, que já pregava a união do trio em apenas uma grande escola, para enfrentar as demais, de igual para igual, desceu o morro cantando um samba feito por ele no ano anterior: “Vamos embalançar a roseira, /Dar um susto na Portela, no Império, na Mangueira. /Se houver opinião, o Salgueiro apresenta / Uma só união”.
Foi a palavra de ordem decisiva para o nascimento dos Acadêmicos do Salgueiro, que deve ainda a Geraldo uma série de lindos sambas, de terreiro e de enredo, como “Vida e Obra de Aleijadinho”, “O Descobrimento do Brasil”, “Chico-Rei” e “História do Carnaval Carioca – Eneida”.
Entre os sambas-enredos, dos muitos maravilhosos do Salgueiro, o justo destaque para “Chica Da Silva” é obrigatório. 
Considerado um dos dez melhores de todos os tempos, foi composto por Nescarzinho do Salgueiro (Anescar Pereira Filho) e Noel Rosa de Oliveira. 
Com ele, Isabel Valença virou mito na fantasia de Chica da Silva e o Salgueiro ganhou seu primeiro título no carnaval carioca.

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