Casa
de bambas: Cascata, Donga, Ataulfo Alves, Pixinguinha, João da
Baiana, Ismael Silva e Alfredinho do Flautim
Ao
lado dos cordões, os blocos ofereceram às camadas menos favorecidas
da população uma forma de divertimento ao seu alcance. Bastava um
grupo mais animado se reunir em torno de instrumentos de percussão,
alguém lembrar um samba e estava plantada a semente de mais um
bloco.
Alguns
não tinham vida longa, outros sobreviviam sem pretensões, mas houve
os que caminharam com destino certo e acabaram por se transformar em
escolas de samba, com seu nome garantido na história.
Em
São Paulo foram foliões brincando o carnaval, com suas camisas
verdes e calças brancas, que deram origem à Escola de Samba Camisa
Verde e Branco.
No
Bixiga, surdos e tamborins, que defendiam os sambas do Vai-Vai como
cordão, passaram a fazê-lo quando o cordão virou escola de samba.
No
Rio de Janeiro a história é rica em exemplos, quando blocos
organizados se fundiram e se transformaram em escolas.
Deixa
Falar, a primeira escola de samba a ser assim reconhecida, tem
origens no Bloco Vai Como Pode, do bairro de Oswaldo Cruz.
O
mesmo Vai Como Pode que, associado aos blocos Quem Fala de Nós Come
Mosca e Baianinhas de Oswaldo Cruz, transformou-se na Portela, um dos
orgulhos do subúrbio de Madureira.
O
outro, a Escola de Samba Império Serrano, é originário de um quase
bloco, a pequena escola de samba Prazer da Serrinha, cuja má atuação
em um carnaval provocou a fundação do grêmio imperiano.
Cartola e Dona Zica
A
Escola de Samba da Mangueira surge da fusão de três blocos rivais
no morro, que o compositor Cartola conseguiu unir sob uma mesma
bandeira: o Bloco da Tia Tomásia, o Bloco da Tia Fé e o Bloco dos
Arengueiros.
O
Salgueiro tem em suas origens o Bloco Depois Eu Digo. A Unidos de São
Carlos, no Bloco Cada Ano Sai Melhor.
A
tradicional União de Jacarepaguá surgiu do Bloco Vai Se Quiser.
Mas,
continuará todos os anos indo pras ruas o mais popular de todos os
blocos do país, desfilando em qualquer bairro, em qualquer rua, em
qualquer cidade: ele se chama Bloco Vai Quem Quer, reúne foliões
anônimos, sem samba enredo nem fantasias, mas sempre com muita
disposição e alegria, e ao qual adere quem quiser.
Ismael
Silva desenhava um retângulo e explicava ao compositor Hermínio
Bello de Carvalho: “Pois bem, aqui está a escola de samba. Milhões
de pessoas. Um solista. Quando o samba entra na segunda parte, entra
o solista. Pois bem, como é que, naquela confusão toda, o pessoal
vai saber quando deve atacar a primeira parte novamente? Aí entra o
surdo, que dá aquelas duas porradas fortes e o pessoal entra macio,
tudo certinho”.
Fica
então clara a importância do surdo. Tamborins, latas de manteiga,
cuícas e pandeiros compunham a bateria da Deixa Falar, em sua
estreia. Faltava um instrumento de marcação que comandasse a escola
e fosse ouvido por todos os componentes.
Alcebíades
Barcelos, o “Bide”, que já tocava seu tamborim desde menino e que
trouxera o instrumento para a escola, observando o som das grandes
latas de manteiga usadas na percussão, resolveu melhorá-las.
Comprou
dois aros, fixou um por dentro, outro por fora, segurando o couro com
tachas ao redor e pronto. A Deixa Falar entrou na Praça Onze falando
mais alto. Todos adotaram a novidade, creditando a Bide a invenção
do “surdo”.
Quanto
ao tamborim, Bide dizia: “Esse não tenho certeza se inventei. Mas
o que me lembro é que, desde molequinho, já fazia, encourava e
tocava na rua, sem bloco, sem nada, as pessoas querendo saber que
instrumento era aquele”.
“A
gente precisava de um samba para movimentar os braços pra frente e
pra trás durante o desfile. A gente precisava de um samba pra
sambar”. A descrição é de Ismael Silva para justificar a
novidade na criação dos compositores do bairro do Estácio de Sá,
modificando a forma dos sambas de sucesso na época, desde “Pelo
Telefone”, passando por “Jura” e “Gosto Que Me Enrosco”,
todos eles guardando ainda estreito parentesco com o maxixe.
Sambista
do primeiro time, Bucy Moreira, ritmista famoso e morador do Estácio,
citado pelo pesquisador Nei Lopes, dá outro testemunho valioso:
“Minha mãe me mandou comprar manteiga na padaria e no caminho vi
quatro camaradas reunidos cantando samba: o Zeca Taboca, um outro
rapaz que o pessoal chamava de Brinco, o Edgar com sua camisa de
malandro, e o Rubem, muito alto e com cara de grego. Estranhei a
novidade e perguntei: ‘O que é isso?’ E disseram: ‘Isso é um
samba moderno que o Rubem fez’. E cada um dizia um verso de
improviso.” Mano Rubens era irmão de Bide, autor de “A
Malandragem”, o primeiro samba gravado com esse novo formato.
Isso
acontecia em razão do aparecimento da Deixa Falar, a primeira escola
de samba, assim chamada, do Brasil.
Era
na verdade um bloco carnavalesco criado no dia 12 de agosto de 1928
no bairro carioca do Estácio de Sá.
A
sede improvisada ficava no porão da casa nº 27 da Rua do Estácio,
onde morava o fundador do bloco, Ismael Silva, líder dos sambistas
do bairro.
Como
nas imediações, mais exatamente no Largo do Estácio, funcionava
uma Escola Normal, que formava professores para a rede escolar,
Ismael resolveu batizar seu grupo de Escola de Samba, já que
formaria professores de samba.
E
a nova escola já nascia com um “corpo docente” da melhor
qualidade, pois, além do próprio Ismael, participavam Mano Aurélio,
Nilton Bastos, Armando Marçal, Mano Rubens, Baiaco, Brancura, Heitor
dos Prazeres, Mano Edgar e Bide.
A
curiosidade em torno do nome da escola sempre existiu e levou Ismael
Silva, que o escolheu, a contar como foi em depoimento no Museu da
Imagem e do Som, do Rio de Janeiro: “Quanto ao nome, posso dar a
explicação: havia uma grande rivalidade entre os agrupamentos de
samba, Piedade, Estácio, Mangueira e outros. Cada um queria,
naturalmente, ser o melhor e criticavam os outros. Saímos com esse
nome, sabe como é, vamos pra frente, ou seja... ‘deixa falar!’”.
Além
de reunir os jovens e revolucionários compositores do bairro, a
escola pretendia melhorar as relações com a polícia, visto que,
sem autorização, os sambistas não tinham direito de promover rodas
de samba no Largo do Estácio e nem desfilar no carnaval.
Por
isso o grupo tratou logo de legalizar a situação, assumindo sua
importância para a grande festa e para a nascente música popular
brasileira.
O
surdo e a cuíca, lançados pela Deixa Falar, tornaram-se
indispensáveis na percussão do samba, e a influência de seus
compositores se nota, de imediato, nas obras de autores como Ary
Barroso e Noel Rosa, os primeiros ditos “urbanos” a abandonarem o
estilo de Sinhô, para aderirem aos sambistas do Estácio.
Noel
Rosa, que, aliás, tinha muito cuidado ao escolher seus parceiros,
fez algumas composições com Ismael Silva.
Ambos
se completavam, mesmo com estilos de boemia completamente diferentes,
o mais intelectualizado de Noel, criado na burguesia da Vila Isabel,
e o voluntarioso e rebelde de Ismael, cultivado na malandragem do
Estácio de Sá.
Ismael
se autorretrata musicalmente em um samba magistral, “O Que Será De
Mim?”, criticado pelos moralistas e aclamado pela malandragem: “Se
eu precisar algum dia/ De ir ao batente/ Não sei o que será./ Pois
vivo na boemia/ E vida melhor não há. / Não há vida melhor/ E
vida melhor não há/ Deixa falar quem quiser/ Deixa quem quiser
falar./ O trabalho não é bom./ Ninguém deve duvidar. / Trabalhar,
só obrigado; / Por gosto ninguém vai lá”.
Um
ou dois empregos de curta duração foram o suficiente para a vida
inteira do sambista. Ismael Silva sempre viveu do samba, que era o
que ele sabia fazer de forma excepcional.
O
historiador Sérgio Cabral diz textualmente, por ocasião da morte de
Ismael, em 1978: “Eu tenho uma opinião: o samba carioca só pegou
sua forma definitiva por causa daquela geração de sambistas do
Estácio, na qual Ismael Silva era um líder. Antes, chamava-se de
samba um tipo de música que tinha muito de maxixe. Quando o pessoal
do Estácio de Sá começou a divulgar seus sambas, os compositores
da época protestaram muito dizendo que aquilo era uma deturpação”.
O pesquisador José Ramos Tinhorão caminha na mesma estrada: “O
samba vacilante de Donga, Sinhô e Caninha, da década de 20, ganhou
no Estácio o ritmo batucado com a geração de compositores da
camada mais baixa (Ismael Silva, Nilton Bastos, Bide, Armando Marçal,
Heitor dos Prazeres)”.
Ao
final de sua vida, Ismael tinha uma discografia que acumulava – com
raras regravações – 85 títulos, a maioria deles hoje citados
como básicos para a história da música popular brasileira.
Navegou
em parcerias clássicas como “Não Tem Tradução” (ou “O
Cinema Falado”), com Noel Rosa, e “Se Você Jurar”, com Nilton
Bastos e Francisco Alves, ou sozinho em grandes sambas como
“Antonico” ou “Tristezas Não Pagam Dívidas”.
E,
ao assistir a um desfile de escolas de samba, a pista iluminada,
milhares de sambistas no asfalto, outro tanto aplaudindo nas
arquibancadas,
Ismael sorriu satisfeito: “Quando é que a gente
podia imaginar que aquelas brincadeiras iam dar nisso? Uma coisa de
esquina encher avenida? Hoje isso não é mais escola. É
universidade, é academia, é faculdade, sei lá! E amanhã é a
formatura do pessoal que estudou o ano inteiro. Colação de grau,
desfile em passarela, festa maior do mundo. Que coisa!...”
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