sexta-feira, 29 de maio de 2015

Uma história que deu samba (6)


Carro-chefe do Clube dos Fenianos no Carnaval de 1934
A tela pequena dos televisores tem a capacidade mágica de conter o mundo inteiro, ou pelo menos os acontecimentos maiores que ocorram em seus quatro cantos. E quem, através dela, loiro nórdico, negro africano, moreno europeu, seja lá de que raça for, em qualquer dos tais quatro cantos, sentar-se em sua poltrona e encantar-se com o multicolorido espetáculo que é o carnaval, jamais imaginará o que existe por trás de tudo aquilo.
Os passos que foram dados, as culturas que se entrelaçaram, os gêneros musicais que se somaram, as raças humanas que se caldearam, tudo o que foi necessário para que, ao longo de anos, o resultado explodisse a cada fevereiro em milhões de pequenas telas, ao redor do globo, e em milhares de olhos ávidos e atentos, dirigidos para as arquibancadas do Sambódromo do Rio de Janeiro.
Antes da Mangueira, do Salgueiro, da Portela, do Império Serrano e de tantas outras bandeiras do samba tingirem o asfalto carioca de cores, melodias, harmonias, ritmos e poesia, muita coisa aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, preparando a festa maior.
As grandes sociedades, precursoras, surgiram na metade do século 19 e se mantiveram, por quase cem anos, famosas pelas disputas carnavalescas nos desfiles – chamados pomposamente de préstitos –, com o Clube dos Fenianos, Clube dos Democráticos, Clube Tenentes do Diabo, Clube dos Pierrôs da Caverna, entre tantos outros, querendo ter o maior, o melhor e o mais luxuoso carro alegórico do ano.
No ambiente mais popular, os desfiles eram feitos nos subúrbios pelos blocos, cordões e ranchos, sem que isso diminuísse a animação dos participantes. Destas variadas maneiras de desfiles carnavalescos se originou o atual, o das escolas de samba, que encanta o mundo.
“Ah! Naqueles bons tempos antigos, nós, da classe alta, íamos para a rua divertir o povo!”. O desabafo de um folião do início do século 20, participante dos desfiles das grandes sociedades, retrata como se brincava o carnaval então.

Uma barreira social dividia a folia entre o Grande Carnaval e o Pequeno Carnaval: o primeiro, uma passeata das elites, em que o povo se limitava a assistir e a aplaudir, e o segundo, com intensa participação popular. Em ambos, a presença de ritmos precursores do samba garantia a alegria e a folia.
No final dos anos 1910, o samba começa a se firmar como gênero musical, elemento que se tornaria indispensável ao carnaval. Enquanto isso não acontecia, a folia nas ruas tinha ainda um pouco da falta de sutileza do Entrudo e a beleza dos carros alegóricos das grandes sociedades, que desfilavam com músicas próprias, críticas ácidas ou bem-humoradas ao momento político ou social brasileiro.
As primeiras organizações carnavalescas, desde sua origem na metade do século 19, eram frequentadas por brancos de classe média alta e da aristocracia.
Criadas como ponto de reunião de prósperos comerciantes, grandes banqueiros, ricos fazendeiros e bem-sucedidos profissionais liberais, com leve ar de clube masculino inglês, ali se bebia, jogavam-se cartas e discutiam-se negócios.
A preparação e realização dos desfiles carnavalescos eram apenas parte de suas atividades, mesmo que apresentadas como a principal.
Funções políticas, filantrópicas e culturais eram importantes, tendo alguns clubes e sociedades participado ativamente de movimentos como a libertação dos escravos ou a campanha republicana, além de todos eles destinarem parte de suas arrecadações às instituições de caridade, o que não impediu que grandes nomes da história brasileira se tornassem eméritos foliões no carnaval.

José do Patrocínio, o maior de todos os abolicionistas, era um dos destacados Tenentes do Diabo, uma das grandes sociedades. Podem ser lembrados também, segundo a historiadora Eneida, os romancistas José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida, integrantes do Congresso das Sumidades Carnavalescas, surgido em 1854, o primeiro grupo denominado “sociedade”.
Ao lado dos Tenentes, esperavam-se todos os anos os Democráticos, os Fenianos, os Pierrôs das Cavernas. Com suas grandes alegorias, lindas mulheres e, sobre elas, ricas fantasias, eram aplaudidos pelo povo que se acotovelava nas calçadas, para ver o préstito que os jornais anunciavam dias antes.
Mas o carnaval das grandes sociedades não ficava apenas nos desfiles, já que os bailes em seus salões mantinham acesa a rivalidade, procurando cada uma delas organizar o melhor baile carnavalesco da cidade.
A curiosidade é que a marcha triunfal da ópera Aída, de Verdi, além de muito executada durante os desfiles, era sempre a que abria os bailes. Obrigatórios, também, as batalhas de confetes e serpentinas, o uso de máscaras pelos foliões e os primeiros concursos de fantasias.
Mas a maior contribuição das grandes sociedades para o carnaval, e que viria a desaguar no desfile das escolas de samba, é resumida com muita propriedade por Eneida, a cronista paraense que, com grande sabedoria, captou todo o sabor do carnaval carioca: “A beleza dos carros alegóricos, os carros de ideias e os de crítica, o luxo das fantasias, os fogos de artifício, que os clubes geralmente queimavam em sua passagem, fez com que nascesse no povo um culto pelos préstitos carnavalescos; enchiam-se as ruas, as soleiras das portas, as casas comerciais começaram a alugar janelas e o povo ficava pacientemente esperando três e quatro horas a passagem das sociedades”.

Assim, entende-se por que a classe alta ia para a rua divertir o povo, até o Clube Tenentes do Diabo ser o primeiro a admitir sócios de outras classes sociais e Sinhô ser um dos primeiros sambistas a compor para esse tipo de sociedades e a se apresentar com elas, chegando a desfilar com o Tenentes, o Democráticos e o Fenianos.
Não se acredite, porém, que a atitude passiva de simples espectador, atribuída ao povo, seja verdadeira. Da mesma maneira que os populares se deliciavam com os desfiles, as elites necessitavam de suas presenças e aplausos.
O Grande Carnaval não se realizava sem a plateia do Pequeno Carnaval, e isso ficou provado quando, em 1897 e 1898, o subúrbio de Madureira e seus vizinhos resolveram fazer o seu próprio carnaval.
Montaram coretos com bandas de música, construíram palanques e prepararam seus desfiles (humildes ante as grandes sociedades) em suas ruas, saindo em blocos, ranchos e cordões, divertindo-se sem ir para o centro da cidade.
Como consequência a Rua do Ouvidor e adjacências ficaram às moscas, os grandes desfiles perderam o entusiasmo e só com a volta do povo nos anos seguintes a animação foi retomada.
O chamado Pequeno Carnaval constituía-se de grupos formados pelas camadas mais humildes da população, que se organizava de maneira primária em blocos, em cordões e em ranchos, manifestações que serviriam de base para o surgimento das escolas de samba. Tais agrupamentos existiam – como as grandes sociedades – desde meados do século 19 e conviviam de forma paralela.
O termo “cordão” designava genericamente grupos de carnavalescos que reuniam tanto habitantes de bairros elegantes, como seus escravos e populares da periferia.
Historiadores descrevem os cordões como grupos de mascarados fantasiados de “velhos”, “morte” (fantasias muito populares na época), palhaços, diabos, reis, índios, morcegos etc. 
À frente, um mestre comandava o desfile com o auxílio de um apito e todos dançavam ao som do conjunto de percussão: adufe (espécie de pandeiro quadrado e sem pratinelas), cuícas, reco-recos, bumbos etc.
Os “velhos” faziam passos coreografados e os palhaços cantavam chulas aceleradas. Os cordões se originaram da festa de Nossa Senhora do Rosário, realizada nos tempos coloniais e muito apreciada pelos negros.

Foi lá que surgiram o cordão dos Velhos e depois o dos Cucumbis, considerados os mais importantes na formação das escolas de samba, pela contribuição integral da cultura negra. Donga e João da Baiana, sambistas tradicionais, brincaram muitos carnavais nos Velhos e nos Cucumbis.
Nomes curiosos eram adotados pelos cordões, que são lembrados até hoje: Destemidos do Livramento, Papoula do Japão, Caju de Ouro, Rosas de Diamantes, Flor de Café, Vitoriosos das Chamas, Deusa do Paraíso, Amantes de Santa Teresa, sem contar com os apaixonados pelas morenas como a Sociedade Amante das Morenas e Clube Paraíso das Morenas.
Os blocos carnavalescos surgiam da reunião de vizinhos e pessoas conhecidas de um mesmo bairro, rua ou trabalho, para brincar o carnaval. Eles tinham caráter improvisado, sem coreografia ou enredo definidos, medida, porém, que só veio a ser adotada em fase posterior, no final do século 19 e início do século 20, quando os blocos chegaram a se organizar e promover ensaios antes do carnaval.
De qualquer forma, o bloco sempre se caracteriza pela liberdade maior do folião, que se fantasia como quer, reúne-se aos amigos e tem como finalidade apenas a diversão, sem estar preso a normas ou regulamentos. É tão livre que, por mais de trinta carnavais, desfilou pelas ruas do Rio de Janeiro o Bloco do Eu Sozinho, que se tornou famoso e era esperado a cada ano, embora fosse sempre igual.
O mesmo cidadão que, solitário, usava um chapéu tirolês, a parte superior de um fraque e uma larga calça de algodão estampado. Portando a tabuleta que identificava seu bloco, cantava sempre a mesma melodia, que a cada ano deixava claro o quanto lhe irritavam as multidões.
Outra modalidade que contribuiu para o aparecimento das escolas de samba foi o rancho. Era uma espécie de cordão mais organizado e com presença feminina. Possuía instrumental mais rico, com violões, cavaquinhos, flautas e clarinetes.
Um coro entoava a marcha do rancho e havia certa coreografia nas apresentações. O porta-estandarte era obrigatório, bem como um mestre de harmonia para a orquestra, um de canto para o coro e o terceiro para a coreografia.

Havia muita rivalidade entre os ranchistas no Rio de Janeiro, cada um querendo ser mais importante do que o outro.
Quando Tia Ciata brigou com Hilário Jovino, o mais conceituado ranchista da cidade, só de birra e para provocá-lo, criou um rancho bastante anarquista.
Com repolhos, tomates e cebolas no seu estandarte, a partideira deu-lhe o nome de O Macaco É Outro.
Hilário Jovino, claro, ficou mordido.
Dos ranchos sérios e famosos, o que mais contavam com a simpatia popular eram o Mimosas Cravinas, Flor do Abacate, Ameno Resedá e Kananga do Japão, apesar de existirem muitos outros.

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