sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

BICA: Um Reduto da Rebeldia em Manaus


A água, água, água, água, água / lava tudo / A água só não lava / A língua dessa gente... 
(Emilinha Borba, na marchinha intitulada Palavra)


Por Orlando Farias

Imaginem uma senhora de 60 anos, 100% fora dos padrões de beleza, docemente cavernosa, que parou naquele Bar do Armando há muitos anos numa rotina impressionante: ela reza todas as noites na Igreja de São Sebastião e, ao sair, beberica uma cerveja no espaço ao lado.

Não é preciso ir muito longe para saber que naquele ato e gesto da admirada e adorada Petronila de Carvalho, há uma fusão dos aspectos religioso e profano.



A Doce Rainha Petronila – Não por acaso, Petronila virou a rainha eterna da BICA desde o primeiro carnaval naquele já cada vez longínquo fevereiro de 1987. E igualmente não por acaso, a BICA é uma mistura dos muitos valores culturais da terra de Ajuricaba.

Numa entrevista realizada em janeiro de 2004 com a própria Petronila, no dia da realização do desfile da banda, em sua residência, quando estava sendo conduzida até a praça São Sebastião (ela estava adoentada e não conseguia andar direito), a Rainha da Banda traduziu em poucas palavras para o autor e para o fotógrafo Marco Gomes o estado de espírito dela própria em relação ao fenômeno em que se transformou a BICA:

“Para mim a BICA é como rezar; é estar sempre alegre dentro de mim mesma!”.

Tanto quanto o estilo Petronila do rezar e de uns bons copos de cerveja, a frase da Rainha é reveladora de um sentimento quase religioso que as pessoas, sobretudo aquelas pessoas que passaram com o tempo a se identificar pelo neologismo de “biqueiros”. Há definitivamente um fervor naquilo que nunca deixou de ser uma brincadeira do início da década de 80, sempre nos fins de ano e na semana derradeira do carnaval: a batalha do talco travada entre os vários freqüentadores do Bar do Armando.


Mona e Pepeta – Há dois nomes cuja imagem é muito associada ao estilo libertário e prosaico da banda. A primeira é a Porta-Bandeira Mona (Maria da Glória Lopes) que, na verdade, foi a primeira Rainha da BICA, passando depois o cetro para Petronila, que era a Princesa. A outra é o Destaque Pepeta, figura que, em seus carnavais, invocava todo o seu poder transformista para virar obeliscas e outras figuras do gênero. Pepeta morreu de causas desconhecidas há alguns anos.

Há dezenas de aspectos religiosos na brincadeira que virou uma das principais manifestações culturais de Manaus. A começar pela influência da própria paróquia de São Sebastião ao lado, mantida secularmente pelos capuchinhos.


Breve História da BICA – Para quem não sabe, o imóvel tombado pelo Patrimônio Histórico Estadual e construído no início do século passado pertence à Ordem dos Capuchinhos. O caráter pluralista, cultural e religioso sempre encantou os missionários da Ordem.

É possível afirmar com certeza que o imóvel existia já em 1913, porquanto exista uma fotografia no Acervo do Estado e por meio da qual a Secretaria de Cultura do Amazonas realizou recentemente a restauração do prédio.

Desde aquela época, o imóvel já era uma mercearia como denota a sua fachada com três portas. Chamava-se Mercearia São Sebastião.

Ao lado da mercearia, onde hoje está localizada a garagem do Armando, onde igualmente ele guarda o seu indefectível Fusquinha modelo 1973, funcionava no passado uma oficina de bicicletas de um cidadão conhecido como Zuza (“Oficina do Zuza”).

Era lá que as bicicletas que circulavam na praça São Sebastião eram consertadas.

Ao lado da ex-Mercearia São Sebastião, moraram algumas proeminências, como o historiador Mário Ypiranga Monteiro, Thales Loureiro e mais recentemente o ex-presidente nacional da OAB e ex-senador Bernardo Cabral.

O patrono da BICA, Armando Soares, garante que ao tomar posse do estabelecimento, vindo do mercadão Adolpho Lisboa, onde vendia carne, o imóvel servia para revenda clandestina de derivados de petróleo. Provavelmente, por conta disso, os capuchinhos desfizeram o negócio com o antigo locatário e o repassaram ao atual ocupante.


Raízes Religiosas da BICA – Há dezenas de aspectos religiosos na brincadeira que virou uma das principais manifestações culturais de Manaus. A começar pela influência da própria paróquia de São Sebastião ao lado, mantida pelos capuchinhos.

Basta lembrar que no carnaval da BICA em que a banda fez uma crítica direta às seitas religiosas e tascou com o samba de sucesso do hit parade “Xô, Satanás”, frei Fulgêncio Monacelli, coordenador dos Capuchinhos, esteve pessoalmente vários vezes no Bar do Armando para demonstrar sua solidariedade ao tema.

O crescimento da Banda da BICA acabou sendo uma dor de cabeça para frei Fulgêncio, que mantém uma reivindicação há mais de 15 anos depois dos primeiros carnavais: a de que o sábado, dia da concentração da banda, deveria ser transferida para outro dia da semana ou mesmo, numa concessão, para o domingo.

Frei Fulgêncio Casamenteiro – A lamúria e a reivindicação são motivadas por uma tradição na Igreja de São Sebastião: a sua forte tradição casamenteira. Trata-se da igreja mais charmosa para um casal contrair núpcias por causa do cenário arquitetônico e histórico em volta e pela própria história da igreja decorada originalmente como planejou o gênio italiano De Angelis.

Decerto que, por uma questão de tradição mais recente, a reivindicação sincera de frei Fulgêncio até hoje não pôde ser cumprida: o carnaval da BICA arraigou-se de tal maneira enquanto data no sábado magro da semana momesca, que seria quase impossível convencer a banda de realizar em outro dia e conter os brincantes que nesse dia se concentram espontaneamente, sem precisar conferir a data em reportagens de jornais. A faixa estendida na fachada do bar alertando para o dia da saída da banda é mais do que suficiente para mobilizar a população.

Mais recentemente, porém, frei Fulgêncio Monacelli encontrou uma maneira de compatibilizar os casamentos: antecipa sua celebração para o início da tarde, quando o público ainda não lotou o Largo de São Sebastião.

Não é difícil imaginar que os recém-casados encontrem pela frente um cenário ainda mais temperado de alegria, já que na saída deles, por volta de 13 às 15h, a irreverência e a folia literalmente já galopam lá fora. Há um certo sonho alimentado pelos biqueiros mais novos de que suas respectivas cerimônias de casamentos ocorram na Igreja de São Sebastião ou em locais mais nobres como o palco do Teatro Amazonas.

Os contornos religiosos saltam aos olhos por todos os lados. Os bonecos gigantes construídos pelo ventríloquo Paulo Mamulengo são uma prova disso. Eles não representam apenas figuras vivas como Armando Soares, Dona Lourdes Soares (sua esposa), Deocleciano Bentes (um dos coordenadores da banda), como também figuras que fizeram história naquele espaço e na própria banda.


Celeste, Celestial, Criatura – A funcionária pública Celeste Pereira e fundadora da banda, foi uma delas. Falecida prematuramente no ano de 1997, Celeste foi alvo de uma das maiores comoções dos membros da banda. Em seu funeral, a Bandeira da BICA estava lá.

Celeste ganhou imediatamente o status de uma personalidade pós-morte, ocupando importante espaço na galeria da banda que, vale ressaltar, existe apenas na memória dos fundadores, dos biqueiros e dos freqüentadores do espaço cultural do Bar do Armando.

Uma das cenas mais marcantes da história da banda envolve um ato estritamente religioso: o momento em que chega na praça São Sebastião, hoje Largo de São Sebastião, o boneco confeccionado por Paulo Mamulengo em homenagem a Celeste.

Dezenas de membros da banda choraram em profusão, totalmente em desacordo com as normas do carnaval onde o reinado é o da alegria.

O empresário Isper Acram, ladeando o presidente regional da OAB, Alberto Simonetti Filho, não se conteve: “Simonetti, eu não estou entendendo nada. O boneco é bonito. Era para todo mundo estar rindo e aqui ao nosso lado todo mundo está chorando”.

Só então Acram ficou sabendo que o boneco que chegara era o confeccionado em homenagem a Celeste cujo falecimento tinha ocorrido há apenas dois meses. Excelente cantora e animadora cultural, Celeste, Celestial, Criatura (slogan da camisa em sua homenagem), ela era uma espécie de símbolo da alegria da banda.

O contorno religioso pode ser visto ainda no boneco de Salignac, um dos fundadores da banda, que teve o boneco confeccionado antes de sua partida desta vida, e no próprio boneco do frei Fulgêncio. Por representar um ícone da sociedade amazonense – de longe frei Fulgêncio é uma das figuras mais queridas da cidade –, o boneco é manipulado com certos limites, sempre cercado de respeito pelos brincantes.

O boneco em homenagem a Armando Soares é cercado do mesmo respeito pelos brincantes. Diferente do de frei Fulgêncio, ele é manipulado de forma mais lúdica, alegre e brincalhona.

O boneco, afinal de contas, reproduz muito o humor do próprio Armando, uma figura brincalhona e irreverente que, antes das pegadinhas da TV, já adorava pregar peças em seus clientes. “– Olha, Nazareno, ele veio aqui te procurar!”. “– Quem, sêo Armando?”, pergunta inocente o jornalista Jersey Nazareno. “– Ó caralho!”, diz Armando com o forte sotaque lusitano. “Ó caralho, tu quer cegar ou tu quer ser gay?” (risadas gerais).

No gesto de Armando Dias Soares, 70 anos, sobressai denso o profano que, no dia do desfile, embala um dos carnavais mais instigantes que se conhece. A banda é uma irreverência referencial na cultura da cidade, queiram ou não as pessoas que a desprezam.

O próprio Armando traz na sua história traços muito firmes da irreverência. Quando jovem, participava ativamente de reuniões do clube representativo dos seus patrícios – o Luso Sporting Club.

Não raras vezes contestou atos da diretoria e, numa delas, as desavenças chegaram até a esfera policial, já que Armando, bom de briga, não deixou por menos, e aplicou uns safanões em certo portuga.

Por ter sido a vida inteira um homem irrepreensivelmente honesto e mantendo sempre uma postura exemplar, seja como comerciante, seja como marido e pai, acabou sendo assimilado e convertido como espécie de uma referência obrigatória da imigração portuguesa para Manaus.

Não foi por outro motivo que diretores e produtores portugueses que rodaram o filme A Selva, baseado no romance do escritor português Ferreira de Castro (morou no Amazonas, precisamente no sítio Paraíso, na região dos seringais no rio Madeira), quiseram conhecer o Bar do Armando e o próprio comerciante assim que aterrissaram na capital amazonense em 2002, procedentes de Portugal.

Quem quiser um roteiro clássico de tal irreverência é só consultar a extensa lista das marchinhas que a BICA lançou, todas elas abordando temas picantes, satirizando os políticos do Estado.

Ninguém incorpora melhor um perfil indelével, uma marquinha registrada, digamos assim, como o patrono em pessoa da BICA, Armando Dias Soares. E logo ele que representou o momento máximo da banda, o momento inesquecível, arrebatador de todos os que se proclamaram biqueiro.

O momento foi a transformação do patrono da banda em “Cidadão de Manaus” na Câmara Municipal. O projeto que outorgou a cidadania a Armando foi apresentado por um biqueiro, o vereador Francisco Praciano, em 1998.

A batalha para aprová-lo remonta um processo levado a efeito por freqüentadores da Banda da BICA. O grupo literário e artístico Gens da Selva sensibilizou em iniciar uma campanha visando a tornar Armando “Cidadão de Manaus”.


Armando, Cidadão do Mundo e de Manaus – A maneira encontrada para garantir o título ao nosso portuga-mor foi iniciar o levantamento de assinaturas de eleitores propondo a concessão da outorga ao patrono da BICA. As assinaturas enfeixavam uma categoria parlamentar que é uma conquista recente do aperfeiçoamento democrático e constitucional do Brasil – a emenda popular.

“Levamos cerca de um mês apenas para reunir 5 mil assinaturas. Foi relativamente fácil porque Armando realmente é uma figura muito querida na cidade e todos queriam assinar”, diz o poeta Marco Gomes, lembrando que o vereador Francisco Praciano participou ativamente do processo e desde o início fez questão de chamar para si a responsabilidade de apresentar a Emenda.

Ela foi apresentada em sessão da Câmara Municipal de Manaus no segundo semestre de 1998 e aprovada por unanimidade. No fim do ano, celebrou-se a cerimônia de outorga do título. Foi a primeira vez, ao que consta, que Armando deixou aquele seu jaleco azul com o qual é visto sempre atendendo sua clientela para envergar um garboso terno com gravata.

O feito de Armando era muito fácil de estabelecer. Sem que a cidade percebesse seu envolvimento na sua vida política e cultural, Armando garantiu um mínimo de espaço democrático para que jovens, artistas, jornalistas, socialistas de todas as matizes e até rebeldes sem causa pudessem debater diariamente sobre os assuntos da cidade.

Mais tarde, Armando Soares acabou dando à cidade, por iniciativa de seus freqüentadores – inspirada nele e conduzida por ele –, a maior manifestação cultural de rua da cidade – a Banda da BICA.

Um dos coordenadores da BICA, Deocleciano Souza (ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas), fez um discurso simples – flagrantemente de reconhecimento a uma obra que a cidade deve a Armando.

Foi a primeira e única vez que um homem tido como dotado por nervos de aço, que viveu parte da longa era da peixeira na cintura que vigorou nas décadas de cinqüenta e sessenta no mercadão Adolpho Lisboa, quando até crianças faziam o mesmo lá e no matadouro de Manaus (Koure), sucumbiu às lágrimas.

Foi um momento emocionante, conta Deocleciano. Tudo quanto Armando pôde dizer em discurso – “Nós que sabíamos que seu coração estava apertado” – foi que, se morresse naquele momento, estaria partindo feliz por se saber reconhecido pela cidade que escolheu para sua, cidade que tanto ama e onde nasceram, cresceram e se formaram suas duas filhas.

Ana Cláudia e Ana Lúcia são profissionais respeitadas na cidade, atuando uma como pedagoga e agora também advogada, sendo a outra profissional da Comunicação. Ambas biqueiras.

O título foi o mote para que a Escola de Samba Reino Unido da Liberdade escolhesse a história de Armando e da própria BICA como seu enredo no carnaval de 1999. Então presidente da Câmara Municipal de Manaus, o vereador Bosco Saraiva, diretor da Reino Unido da Liberdade, teve a idéia de estalo. Armando era um excelente nome para o carnaval da sua escola no próximo ano na avenida.

Chegado o grande dia do desfile, o enredo “Armando Brasileiro” sacudiu o Sambódromo e venceu de ponta a ponta na computação dos resultados. Os biqueiros passaram três dias comemorando.

Malhação de Judas – A partir daquele momento e daquele ano, ficou claro para os biqueiros que a brincadeira tinha ido longe demais. Convertera-se em expressão cultural da cidade. E como tal, a “brincadeira” jamais poderia acabar, até porque virou uma lei da cidade – esperar o carnaval da banda como uma espécie de “Malhação do Judas” (novamente pontifica aí o religioso) fora de época.

Virou lugar-comum fora da BICA chegar e indagar: “Quem é que vocês vão malhar esse ano?”. E a “malhação da BICA” virou quase uma obsessão popular, já que significa sempre satirizar políticos e personalidades inatingíveis pela crítica popular e muitas vezes até pela própria imprensa.

Tem o mesmo tom de malhação uma pequena tradição recorrente da cidade ao dia seguinte às eleições: “A Partida para o Balatal”. Freqüentadores da banda não deixam nunca de aparecer no “Day After” para enumerar os passageiros do Batelão (um barco sem cobertura para protegê-los do sol e da chuva) derrotados nas eleições e que, punidos pela sociedade, vão cortar seringa em distantes seringais, conforme a brincadeira irreverente do imaginário popular amazonense.

É muito comum, durante os períodos eleitorais, vigorar também uma certa “marcha do pleito”. São freqüentadores da BICA, afinal, pesquisadores de opinião pública e marqueteiros. As anedotas mais picantes invariavelmente surgem ou são reverberadas para a população.

A Consolidação da BICA – Ainda sobre a comemoração do “Armando Brasileiro” na avenida, vale lembrar que daquele momento brotou outro sentimento que emergiu cristalino do seio dos “brincantes”. A de que aquela era uma brincadeira que verdadeiramente arrebatara senhores de cabelos grisalhos, homens do povo, sisudos doutores do Judiciário, desocupados, poetas, etc, etc, etc. Um sentimento de profunda alegria e de amor à banda povoaram os seus admiradores.

As lágrimas foram traduzidas na frase de um dos fundadores da BICA, o promotor público Francisco Cruz: “A brincadeira da BICA é uma coisa muito séria”.

Se é ou não uma coisa séria, objeto, aliás, atraente para o debate dos seus admiradores e até das pesquisas da Antropologia, a BICA pode dizer que é rigorosamente uma banda de carnaval. E mais: uma banda que, arrebatando corações e mentes, mantém-se fiel aos seus postulados de ser verdadeiramente de carnaval e de rua.


Toscano e os Gêneros da Moda – Sendo uma banda de carnaval, ela nunca se permitiu enveredar por ritmos e gêneros musicais diferentes ou de moda. “Nunca sucumbimos ao poder avassalador da indústria das músicas da moda”, explica Afonso Toscano, outro fundador muito influente e autor de muitos dos sambas que levaram o nome de biqueiros mortos, como é da tradição da BICA.

Mantém rigorosamente a sua origem de bandinha de rua. Jamais se curvou à tentação de migrar para um carnaval comercial, em lugares fechados, com cobrança de ingressos e outros expedientes.

“A marca do nosso carnaval é que ele é feito na rua de forma livre e espontânea”, diz um dos organizadores da folia no Largo, o também artista Manuelzinho Batera. Ele lembra que o custo do primeiro carnaval foi praticamente zero e foi bancado pela contribuição dos freqüentadores do espaço cultural Bar do Armando.

O fenômeno de massa em que se converteu acabou exigindo um investimento mais vigoroso para garantir ampla segurança aos brincantes, banheiros públicos, sonorização e cachês da banda de metais que acompanha a BICA. “Hoje, além da contribuição dos muitos membros, aceitamos um ou outro patrocínio”, diz Manuelzinho. Resta ainda lembrar que, no dicionário da BICA, ser biqueiro é ser relativamente fiel à sua banda.

Sem Precisar das Estrelas – Um fato marcante e indelével da imagem da BICA: o fato de ser a única banda que não precisa contratar atrações de fora, artistas a peso de ouro, bandas de cachês milionários, visando atrair público ao Largo de São Sebastião.

A BICA tem apenas uma atração: a sua Banda de Metais. Também faz um único tipo de propaganda para anunciar o dia da realização de seu carnaval: a divulgação boca a boca. Mais do que isso, uma faixa em frente ao Bar do Armando anuncia o dia do seu carnaval.

Esse caráter original e mobilizador deve encher de inveja muitos políticos que, para atrair platéia, recorrem a contratação de artistas, bandas e outras estrelas em seus eventos.


O Biqueiro Serafim – Um caso clássico é o do economista Serafim Corrêa, biqueiro desde a primeira hora, que freqüenta o Armando, dentre outras coisas, por causa dos seus laços lusitanos. O pai de Serafim, Joaquim Francisco Corrêa, e seu tio, Alcino Francisco Corrêa, eram amigos pessoais de Armando.

Pouco afeito a eventos festivos, Serafim sempre se destacou como um membro de ponta da banda, sendo um caso máximo de fidelidade a ela. “Minha única paixão nesse caso é a BICA”, sustenta.

A frase de Serafim Corrêa pôde ser inteiramente confirmada no dia 29 de outubro de 2004, ao fim do debate na TV que travou com Amazonino Mendes e no qual venceu incontestavelmente o seu adversário, conforme levantamento do instituto Action Marketing e Pesquisas de Mercado. Sabendo que a BICA estava lotando e torcendo por ele, Serafim saiu do debate direto para rever os amigos biqueiros.

Em determinado desfile da banda (ela percorre todo ano uma área do Centro com seus bonecos, bandeiras, flâmulas e personalidades), Serafim foi induzido por brincantes a subir no trio elétrico da BICA. Como aquele ato transpareceu imediatamente aos olhos dos biqueiros como um ato de favorecimento político, houve imediata reprimenda para que Serafim de lá descesse.

Democrata e muito afinado com as regras da BICA, ele imediatamente entendeu o recado e desceu do trio sob aplausos. Aliviado, desceu acompanhando a marcha da banda como simples membro.

O mais dramático fato envolvendo um político ocorreu com a vereadora de Manaus, Lúcia Antony, biqueira histórica, impedida de ler um documento elaborado por um grupo de biqueiros.

Alegou-se, como é da norma da BICA, que não se lê manifestos, notas ou coisa que o valha durante o carnaval. É vedado o uso de discurso, o tom de comício. Ali reina 100% o império do carnaval, de suas brincadeiras, irreverências, malhações e marchinhas.

A norma que penalizou Lúcia Antony estava e está em vigor. Mas Lúcia leu um documento elaborado por um pequeno grupo de biqueiros, ao qual me incluo, redimindo-me com ela daquela desconfortável reação da massa. Aliás, em carnavais posteriores, Lúcia Antony recebeu das mãos deste autor camisas da diretoria da banda em sinal de respeito e reverência.


Amazonino na Restauração – O fato de haver tanta gente de esquerda na BICA não quer dizer que ela não seja um espaço plural. As paredes do Armando são o melhor testemunho. Ali está fixada uma fotografia da visita que o ex-governador Amazonino Mendes fez ao bar, no momento em que a fachada histórica do imóvel estava sendo restaurada.

Dois Fenômenos, Duas Lendas – A BICA respira mesmo ares muito civilizados. Dois casos são clássicos e reveladores da oxigenação do ambiente. O do ex-fora da lei Euler Silva, o popular “Cocota”, e o policial Carlos Lamego, que se fez acompanhar durante muito tempo pela suspeita de matador e maligno.

Cocota é uma lenda da praça São Sebastião (hoje Largo) e de seus arredores, tendo se envolvido com tráfico de drogas e outros pequenos ilícitos. Lamego foi objeto de muitas reportagens citado sempre como exterminador. A acusação ele sempre rechaçou: “Na verdade, fui apenas duro no cumprimento da lei e no combate permanente aos bandidos”, ressalva hoje.


Lamego admite que deve muito a BICA e aos estudos, aos quais resolveu se debruçar após os 30 anos, pela superação definitiva daquela triste fama. “Na BICA, eu me purifiquei bebendo na experiência de vida de muitos amigos”, conta Lamego. Diz que aprendeu boas doses de humanismo, de ética e de democracia. “Hoje eu sou muito mais ponderado, crítico e devoto uma importância grande aos estudos”, diz.

Hoje, já tendo ultrapassado a casa dos 40 anos, Lamego continua investigador de ponta da Polícia Civil. Mas tem um grande orgulho na vida. Conseguiu concluir um curso superior e ser Psicólogo, profissão que já começa a exercer, ao mesmo tempo que vai levando adiante os estudos – cursa atualmente pós-graduação numa universidade de Manaus.

É oportuno lembrar que um ex-policial, Waldenor Figueiredo, “Metralha”, cumpriu mais ou menos a mesma trajetória. Waldenor formou-se em advogado e foi diretor da BICA. Faleceu há três anos e virou um dos “compositores” da banda, uma estratégia do corpo de compositores da Casa para não atrair o ódio e a ira dos poderosos sobre cidadãos que continuam militando nesta vida.


O Admirável Vagabundo – Cocota, por sua vez, aprontou tudo que tinha direito. Foi morar na rua protegido por uma companhia lendária – a de uma cadela cujo maior feito foi tê-lo esperado dois meses à porta do presídio Raimundo Vidal Pessoa. No dia em que de lá saiu, dois meses após um flagrante por levar consigo algumas trouxinhas de maconha, lá estava a cadela à sua espera.

Cocota jamais foi um homem perigoso à sociedade. Na verdade, naufragou sob o impacto das ondas ditadas pelas mazelas sociais e do banzeiro da mediocridade das estruturas do Estado, que não lhe permitiram, em determinado momento da vida, ser um simples vagabundo.

A história de Cocota foi muito bem ilustrada pelo jornalista Inácio Oliveira, biqueiro, numa reportagem no jornal Amazonas em Tempo e legou um título inesquecível: “Admirável Vagabundo”. Mais recentemente, no ano de 2003, Cocota foi motivo novamente de uma reportagem levada a efeito pela assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Amazonas. Ele foi identificado como um dos muitos casos de pessoas que não viraram reféns do crime, após entrar em seus subterrâneos e deles sair intacto.

Cocota foi se retirando dos submundos pela ação assistencial da igreja capuchinha de frei Fulgêncio Monacelli e com a ajuda de muitos biqueiros, com destaque para o psiquiatra Rogelio Casado e o delegado aposentado Trindade, ambos biqueiros.

Reabilitado socialmente, sem dever nada à Justiça ou à sociedade, Cocota cumpre uma missão pra lá de louvável a qualquer ser vivente que habite esse planetinha azul tão açoitado por impactos das guerras, das revoluções industriais e tecnológicas que se sucedem e das devastadoras perdas impostas pela exploração criminosa das matérias-primas. Cocota coordena no Paricatuba (margem direita do rio Negro, em frente da cidade de Manaus) um projeto de reprodução de mudas nativas da Amazônia para reflorestar áreas degradadas da floresta.

O projeto vem sendo executado numa ilha 100% nativa e selvagem, espécie de santuário de lazer para muitos integrantes da BICA, já que ela é de propriedade do agora advogado Trindade.

Vale também ressaltar duas figuras muito populares do Armando. O sambista Américo Madrugada em função de suas letras irônicas, e o traço original de Jorge Palheta. Aliás, e muito oportunamente, Palheta iniciou em Manaus a tradição das camisetas de carnavais com temas hilariantes e irônicos a partir de camisa que pintou para a banda. Hoje, Palheta é praticamente uma marca de camisas em bandas de carnaval.

Aproveito o gancho da relação do psiquiatra Rogelio Casado com Cocota para resgatar um dos momentos mais intensos da trajetória da banda, suficiente para revelar a atuação de um setor que pontifica no presente relato: a atuação do setor jurídico da BICA antes ou depois de seu carnaval.


Uma Prisão Insólita – No ano em que a BICA satirizou o lado sombrio do Poder Judiciário, o advogado Félix Valois, biqueiro, emprestou sua beca (vestuário) ao psiquiatra Rogelio Casado, como uma maneira de ilustrar melhor o enredo.

Em determinado momento daquele carnaval, pessoas que se identificavam como membros do Serviço de Inteligência da Aeronáutica deram voz de prisão a Rogelio alegando que aquele ato constituía atentado aos poderes constituídos.

Rogelio estava preso e rodeado por aqueles agentes, quando vários advogados chegaram, entre eles o próprio dono da beca, o advogado e biqueiro Félix Valois.

A prisão foi contestada. Os oficiais disseram que ele estaria usando irregularmente um vestuário do Poder Judiciário, maculando-o. Em verdade, o agente confundiu a toga dos juízes de Direito – que é privativa do Judiciário, com a beca dos advogados. “A beca é minha e fui eu que a emprestei. Se há crime, quem deve ser preso sou eu”.

Chegou em seguida o presidente da OAB, Simonetti, declarando que autorizara o uso simbólico da mesma por parte do psiquiatra. Foram chegando juízes de Direito, promotores, defensores públicos e jornalistas registrando o fato. A prisão acabou sendo relaxada.

Retomando o foco sobre o gigantesco carnaval de todo ano, é curioso o fato de a multidão não ser fruto de nenhuma estrutura planejada e muito bem organizada da banda. A desorganização, aliás, é uma das suas marcas.

Em primeiro lugar, a banda nunca teve presidente. Geralmente, são eleitos um, dois ou três coordenadores que vão se responsabilizar pelo carnaval daquele determinado ano.


Charles e a Diretoria – Existe uma diretoria que surgiu ao sabor das nuances e dos copos de cerveja. Ela passou a existir a partir de uma frase do ex-garçom Charles, uma das estrelas da banda que ganhou fama e montou um bar nas proximidades – o Cinco Estrelas, espécie de sucursal da BICA. Charles atendia aos freqüentadores que ganharam a primazia de beber dentro do balcão do bar como a diretoria. “Aí, vai mais uma cerveja para a diretoria”, dizia.

Atento ao juízo de valor inferido pelo garçom, José de Anchieta Lins, 48, comprou a idéia e lançou uma camisa com o timbre da diretoria, que nunca foi eleita, sequer são conhecidos quantos membros a integram. O fato é que a camisa estabeleceu uma escala de valor na hierarquia da banda e aqueles que a envergam desfrutam de prestígio interno.

Por mais incrível que pareça, contudo, não há reunião para a eleição dos enredos, tampouco dos sambas-enredo. A escolha de um e outro vai se dando ao sabor dos acontecimentos e das conversas em torno do balcão do bar. Vence esse ou aquele que for garantindo maior apoio interno.

Oposição Sistemática – Há muita luta interna para que o tema da BICA não ceda às tentações do poder.

Em determinado ano, o tema fez ligeira saudação a um biqueiro que se aliançara ao poder – paródia da toada “Vermelho” (Chico da Silva). Uma parcela imensa de biqueiros protestou e saiu vestido com uma camisa provocativa: “Eu não me aliancei”.

“Foi uma maneira de dizer ao povo que a BICA não iria trair suas origens”, diz Lúcio Carril, fundador nato e membro da oposição que, sem precisar escamotear, sempre atuou em espaço próprio na existência da banda.

Na verdade, em pelo menos dois carnavais, a BICA saiu dividida entre os seus membros. Esse fato jamais transpareceu ao público. O comportamento talvez explique porque a BICA nunca registrou uma dissidência que saiu de lá para criar uma banda concorrente.

“Somos em verdade um saco-de-gato, gente de todas as áreas e opiniões, mas sabemos zelar por uma manifestação que já é de toda a sociedade”, diz Jomar Fernandes, fundador da banda e juiz de Direito.


O Bonequeiro Louro – De fato, pessoas das mais diferentes camadas sociais fazem parte da banda. Um exemplo é o pequeno comerciante conhecido como Louro, que conheceu a banda vendendo cerveja em caixas de isopor durante um de seus carnavais e a descobriu “como uma causa importante para abraçar”.

Diz ter ficado na cola dos “diretores” até ser aceito, por conta de seus dotes físicos, como segurança dos bonecos da banda. Nascia ali um caso de amor que acabou escrevendo uma das melhores páginas da história da banda.

Louro levou seu amor à BICA a tamanha conseqüência que virou não apenas o bonequeiro e restaurador dos bonecos da banda como o fiel depositário de todos eles. Ganhando a sobrevivência num pequeno lanche, Louro construiu, com recursos próprios, um ateliê nos fundos de sua residência onde são guardados todos os bonecos da BICA.

Dali, eles só saem para exposições ou demonstrações nas escolas, quando solicitado. Um dos atos mais notáveis dele foi a localização de um dos bonecos roubados durante um dos carnavais.

Com pistas que conseguiu entre brincantes, ele saiu à caça como detetive improvisado e conseguiu localizar o boneco. O resgate foi feito com a ajuda da polícia. “A BICA ocupa na minha vida a mesma importância da minha família”, resume, lembrando que sua mulher e filhos são membros da banda. A tradição vai passar de pai para filho pelo jeito. Determinado a manter a guarda dos bonecos dentro de casa, ele já ensinou a um dos filhos a cuidar, conservar e confeccionar bonecos.

Louro é representativo assim de um sentimento que centenas de pessoas devotam por uma manifestação que criou raízes na cultura da cidade e se afirmou como um evento ligado à sua identidade. Ser biqueiro para Louro é um orgulho. Mas nem ser biqueiro significa status e proteção. Afinal, a BICA nunca se livrou daquele clichê discriminatório de ser o local em que pessoas de esquerda faziam a “revolução em mesa de bar”.

O Brasil se democratizou e os muros caíram. Com o surgimento da BICA, perdurou e perdura um certo conceito de que o Bar do Armando é um lugar maldito e de malditos (ainda bem, com todo o orgulho), ainda que esteja localizado no quadrilátero mais belo, charmoso e histórico da cidade de Manaus. O quadrilátero em torno do Teatro Amazonas.


Simplesmente Banda de Carnaval – A BICA é em verdade uma banda de carnaval, simplesmente. Quem negar que ela seja uma das maiores manifestações culturais da cidade de Manaus estará irremediavelmente mentindo.

Há ainda uma particularidade, senão a mais deslumbrante, a que mais confunde o espaço do Bar do Armando com a alma de Manaus – um aspecto de resistência política, de zelo pelos valores barés, de quase tribuna política dos acontecimentos, de pasquinização dos fatos mais burlescos e de um certo jeito “soy contra”, marca dos rebeldes.

Entrevistado à época da restauração do frontispício da BICA, o historiador Robério Braga viu na banda e em torno dela um aspecto romântico: “Ali é a trincheira da rebeldia inteligente porque, afinal de contas, babaca, ali, naquele ambiente, não se cria. É uma trincheira do sarcasmo, da crítica bem-humorada – é a trincheira da Liberdade”.

A BICA constitui mesmo um dos espaços mais politizados da capital amazonense e, de longe, um dos que reúne mais formadores de opinião por metro quadrado de Manaus. Numa palavra, a realidade da cidade e do Estado passam sob o seu crivo diariamente.

A banda ganhou muitos de seus melhores tons e contornos culturais pela proximidade com o Teatro Amazonas, esse monumento construído por Eduardo Ribeiro e inaugurado por Fileto Pires em 1896.

Toda a efervescência do Teatro Amazonas acabava repercutindo ali naquelas mesas do Bar do Armando. Ressalte-se a grande importância que teve o projeto “Nossa Música” levado a efeito pela Administração de Guto Rodrigues, também biqueiro, na Superintendência Cultural do Amazonas. Celito, Toscano, Candinho e Inês, alguns dos compositores que marcaram aquele momento, são biqueiros. Toscano e Celito são fundadores da banda e dois de seus maiores compositores.

Naqueles anos de 85 a 86, o movimento de música esticou suas canelas em busca de afirmação e houve intenso burburinho cultural dentro e em torno do bar.

Reunindo profissionais dos mais variados setores formais e informais da sociedade, a BICA é também um centro de informações privilegiadas, um caldeirão onde são temperados os mais diferentes assuntos publicados, publicáveis, não publicáveis e impublicáveis.

Adiciono minha experiência pessoal nesse campo. Como repórter, correspondente do JB há mais de duas décadas e redator da coluna “Sim & Não” do jornal A Crítica, sempre tive a BICA como um laboratório de pautas, como fonte orgânica de informações e como consultoria.

Foi bebendo nessa fonte de notícias que jorra abundante diariamente que alimentei grande parte do trabalho como formador de opinião e como repórter. Lembro que desempenho a função de redator da coluna “Sim & Não” há nove anos. Ali na BICA pesquei e capturei muitas informações.

Em contrapartida, a BICA também ganhou muitas linhas da coluna, que chegou a ganhar a fama de ser Diário Oficial da Banda, o que, convenhamos, é um epíteto desprovido de qualquer fundamento e lógica.

De fato, a BICA é uma banda de carnaval de rua. Ela ultrapassou os limites da simples manifestação carnavalesca. O mais pertinente é que seja analisada pela Antropologia e não por um simples registro de sua existência de forma descompromissada com os instrumentos científicos das Ciências Sociais.


A Rebeldia da Banda da BICA – Resta indicar, mais por suposição e emoção do que por constatação metodológica adequada, que a BICA é irremediavelmente fruto dos movimentos de rebeldia que sacudiram o mundo nos anos sessenta. O Bar do Armando, afinal de contas, era na década de setenta o espaço de encontro dos estudantes da Faculdade de Filosofia – que funcionava onde hoje existe o Centro de Artes da Universidade Federal do Amazonas (Caua).

Como numerosos artistas amadores de teatro (Dori Carvalho, Davi Almeida, Djalma Cosmos, Rui Brito, Guto Rodrigues, Marcos José, Paulo Graça, Almir Graça, Socorro Papoula, pessoal do Pombal, etc., etc., etc.), cheguei ali primeiro como militante do movimento cultural (durante a ditadura era uma das poucas opções de expressão).

Posteriormente, passei a freqüentar o Armando quando já passara para a militância no movimento estudantil. As salas de aula eram monitoradas pelos agentes da repressão do famigerado SNI.

Inesquecíveis Professores – Naquelas mesas de alumínio do Armando era possível assistir às aulas de socialismo proibidas em sala de aula. E foi para ouvir professores brilhantes como Rosendo Lima e Theodoro Botinelly, militantes como Laerte Sphefano Aguiar, Nestor Nascimento e Henrique Lima, todos com o coração pulsando pelo Socialismo (o Laerte não vai me perdoar de ser identificado apenas como socialista, então, confiro-lhe o título merecido de marxista-leninista), que eu e dezenas de outros jovens estudantes adotamos o Armando como espécie de escola de formação política.

Esse caráter talvez tenha passado desapercebido da historiografia amazonense. O fato é que ali, entre um gole e outro de cerveja, os estudantes conspiravam à sua maneira sobre os terríveis anos de chumbo que se abatiam sobre eles e sobre o País.

Os tempos de sombra tornaram os jovens opacos e amargos. O Armando, apesar das catacumbas, era povoado por um razoável riso, uma certa ironia, uma alegria incomum, sentimento que o autor recolheu da experiência pessoal de vários remanescentes daquele período.

O comportamento pode ser vislumbrado de corpo inteiro numa brincadeira surgida entre as décadas de sessenta e setenta: uma batalha de talco nos fins de ano que, aliás, era uma extensão do bota-fora de cada ano acadêmico (claramente levado pelos estudantes universitários para lá). A batalha de talco foi depois adotada também no carnaval.


A Língua Ferina da BICA – Ao melhor estilo da marchinha de carnaval de Emilinha Borba que exalta a língua ferina incapaz de ser lavada pela água de qualquer BICA (fonte de água), o movimento incorporado pela banda é fugaz e não deixa passar absolutamente nada sobre os acontecimentos barés.

Daí o autor ter escolhido a estrofe para referenciar o comportamento dos biqueiros, incluído no início deste trabalho.

Vale a lembrança. O saxofonista Toinho, biqueiro, que tem no Armando um de seus palcos para sobrevivência tocando seu sax, garante que a música se tornou muito popular em Manaus a partir de uma apresentação de Linda Batista na avenida Eduardo Ribeiro.

“Ela cantou essa marcha de carnaval que à época era uma das mais populares”, diz o saxofonista, que assistiu ao show quando tinha 15 anos. “Nunca mais esqueci aquela música e a apresentação da Linda Batista”, rememora.

A batalha de talco foi o estopim para a criação da banda, mas não os seus ingredientes constitutivos e determinantes sob a ótica a partir da qual evoluímos.

Importa constatar agora que os jovens daquela época enveredaram pelos mais diferentes caminhos. Muitos são profissionais de ponta no Magistério, no Judiciário, na Imprensa, na Política, etc. Todos desfrutando de larga respeitabilidade.

Já que não se podia discutir política em sala de aula e em outros ambientes, o Armando foi o palco privilegiado daquele debate e nos serviu como escola.


O Charme do Bar e do Largo – Aqueles debates ganhavam o charme de ser travado ali naquela área arquitetonicamente portentosa, onde o senador Fábio Lucena fez o discurso para nós, estudantes das batalhas da Meia-Passagem, lembrando que em volta estão erguidos os três templos mais importantes: o Templo da Arte (o Teatro Amazonas), o Templo da Fé (a Igreja de São Sebastião) e o Templo do Direito (o prédio histórico do Tribunal de Justiça do Amazonas).

Aquele ambiente em que se falava baixinho e no qual era regra não se deixar sentar penetra para evitar infiltrações de dedos-duros, foi o ambiente que ajudou a formar alguns dos melhores quadros profissionais da atualidade.

O bar é um importante espaço na vida política brasileira, já o disseram personalidades da estirpe de Antônio Callado e Chico Buarque de Holanda.

Assim sendo, não é possível deixar escapar um certo sentimento de orgulho diante daquele clichê que vigorou tanto tempo contra os seus freqüentadores.

“Viva a Revolução de Bar!”.

A revolução de bar nos moldou e nos educou pelos melhores caminhos da profissão e da liberdade. Gracias!

Um comentário:

  1. É extremamente purificador conhecer a história de uma banda de carnaval que você tanto curte, mas, ao mesmo tempo, desconhece os acontecimentos, casos e personalidades curiosas e, por que não dizer, brilhantes que fizeram e fazem parte disso tudo. Eu confesso que li isto por acaso, pois estava procurando sobre o carnaval de 94 no Google, o qual eu desfilei no sambódromo pela primeira vez. De sorte caí aqui e me deliciei com o que li.

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