terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Carnaval 1995 - Bota a Camisinha


As eleições de 1994 foram as mais esculhambadas (nos dois sentidos) da história do Amazonas. Durante a apuração dos votos, ainda pelo sistema de contagem de cédulas, não houve dia em que não pipocasse uma acusação de fraude.

O presidente do pleito, desembargador Lafayette Vieira, já havia mostrado que não tinha senso de humor. Por causa de uma matéria chinfrim, publicada no suplemento humorístico Candiru, no Amazonas em Tempo, ele estava processando o jornalista Mario Adolfo por danos morais e exigindo uma indenização de 1.500 salários mínimos.

Dado como morto pelos institutos de pesquisa (sempre aparecia em quarto lugar), o vereador Jefferson Peres terminou em segundo lugar – foi o mais votado em Manaus – e conquistou uma das duas vagas de senador.

Nos bastidores, comentava-se que o irmão do vereador, desembargador Arnaldo Carpinteiro Peres, havia ameaçado de prisão perpétua quem roubasse um único voto de Jefferson. Ou seja, quem não tivesse “santo forte” dentro do Judiciário podia acabar “dormindo eleito” e acordar na “rua da amargura”.

Autodeclarado desafeto da BICA e supostamente um dos favorecidos pela fraude, o radialista Ronaldo Tiradentes, que havia sido reeleito deputado estadual e era indicado como o futuro secretário de Comunicação do governador Amazonino Mendes, mandou um recado curto e grosso para os biqueiros, por meio do jornalista Humberto Amorim:

“Aqueles biqueiros são uns frustados e têm inveja de mim. Que tipo de restaurante caro eles freqüentam? Que marca de carro importado eles usam? Que roupa de grife eles vestem? Aquilo é um bando de pé-rapado. Eles não têm condições de pisar onde eu escarro!”, bazofiou.

A BICA, que havia se engajado na campanha nacional de combate à aids, teve de mudar de estratégia.

Ronaldo Tiradentes, mais conhecido como apresentador do programa “Clube do Rei”, na rádio Amazonas FM, do que por suas atividades parlamentares, entrou na lista negra da banda.

Um levantamento de sua vida pregressa feito pela 2.º Seção da BICA descobriu que ele tinha carteira sindical de jornalista (sem ser formado) e que havia falsificado o diploma de segundo grau para cursar uma faculdade particular.

Os jornais da cidade, todos eles infiltrados por biqueiros, transformaram o deputado em saco de pancadas.

O deputado federal Ézio Ferreira, que havia instalado um “trem de alegria” na gráfica do Senado, também não foi poupado. (Muitos anos depois, Ronaldo Tiradentes faria as pazes com os biqueiros e emprestaria o Trio Elétrico Ciclone para acompanhar o desfile da BICA)

O desfile da banda estava marcado para o dia 8 de fevereiro de 1995. Uma semana antes, começou a circular no Bar do Armando a cópia de uma marchinha sem-vergonha, pontuada de palavrões, que não deixava pedra sobre pedra (“Seu Lalá/ Passe ao menos vaselina/ Pra quem ta fodido/ Toda pica é fina!”, eram os versos mais “comportados”) e distribuía bordoadas a torto e a direito.

O TRE era impiedosamente satirizado. Apesar de não ser a letra oficial da banda, uma das cópias apócrifas chegou às mãos do desembargador Lafayette Vieira e ele radicalizou: proibiu o desfile da BICA.

Durante uma semana, a equipe de advogados da BICA se desdobrou para fazer o desembargador voltar atrás na sua decisão, que culminou com uma nota pública da banda, publicada nos jornais, explicando que não pretendia ofender ninguém e condenando a letra apócrifa e os autores da “brincadeira de mau gosto”.

Os camelôs da cidade resolveram aproveitar o filão aberto pela polêmica.

Durante o ensaio geral da BICA, na quinta-feira, dia 6 de fevereiro, dezenas de becas de cetim vagabundamente mal-costuradas estavam sendo vendidas a preço de banana.

Todo mundo comprou uma: os “poetatus” Simão Pessoa, Marco Gomes, Inácio Oliveira e Carlos Araújo, o psiquiatra Rogelio Casado, os fotógrafos Carlos Dias e Zezinho, os artistas plásticos Jorge Palheta, Arnaldo Garcez e Carlos Doza, e muitos outros.

No dia do desfile, umas quinze pessoas estavam fantasiados com as becas de quinta categoria. O psiquiatra Rogelio Casado era uma dessas pessoas.

O secretário de Segurança, Klinger Costa, apareceu no local, conversou animadamente com o poeta Simão Pessoa, que também estava de beca, e depois se despediu, desejando um carnaval sem violência.

Solícito como sempre, o secretário deixou uma tropa de choque na praça São Sebastião para garantir a tranqüilidade dos brincantes.

Por volta das 2h da tarde, Rogelio Casado estava saindo do banheiro do Bar do Armando, no meio da fuzarca, quando um sujeito se aproximou, mostrou-lhe uma carteira de tenente da Aeronáutica e deu-lhe voz de prisão.

Um outro sujeito se aproximou dos dois e entortou um dos braços de Rogelio para trás. Ele não discutiu nem reagiu.

Numa mesa, perto de uma das portas do bar, estavam sentados o advogado Alberto Simonetti, presidente da OAB, o advogado Félix Valois, ex-vice-prefeito de Manaus, o promotor Francisco Cruz e o juiz Jomar Fernandes.

Quando ia passando pela mesa, Rogelio alertou a turma:

– Olha aí, Félix. Estou sendo preso porque estou usando essa beca...

Os juristas cercaram os dois meganhas.

– Que porra é essa? – rugiu Félix Valois. “Se identifique e me diga o motivo dessa prisão arbitrária!”

Os meganhas se apavoraram. Um deles mostrou a carteira de tenente da Aeronáutica. Levou logo um esporro:

– Aqui não é área militar e nem você está de serviço, senão estaria fardado. Que merda você está fazendo aqui? E cadê o mandado de prisão contra o doutor Rogelio Casado?...

O sujeito tentou sair pela tangente:

– É que ele está usando essa toga de juiz e isso é proibido pela Constituição... A gente só está aqui cumprindo a lei...

– Toga de juiz um caralho! – rugiu Félix mais alto ainda. “Essa é a beca da minha formatura e fui eu que emprestei para ele. Quer dizer que agora não posso mais emprestar meus pertences pessoais?...

– Não, não é isso! – tentou explicar o segundo meganha. “É que...”

– Não é isso um caralho! – explodiu Félix Valois, dessa vez exibindo os caninos. “Se vocês não forem embora agora mesmo, eu vou chamar a Polícia de Choque e colocar os dois no xilindró!”

Vendo que o “demônio” não estava brincando, os “arapongas” se mandaram rapidinho e a paz voltou a reinar na BICA.

Para se acalmar do susto, Rogelio Casado bebeu sozinho uma grade de cervejas. Mas não se afastou mais da “mesa do Judiciário” nem pra urinar.


Bota a camisinha

Autores: Dr. José Barros (Zequinha da Capri), Leomar Salignac, Geraldo Xavier (Capa de Flauta), Zé Peru, Chico da Baia e Waldemir Pepeta
Médiuns: Afonso Toscano e Simão Pessoa

Seu Lalá, o senhor me ferrou
Dormi eleito, acordei, tudo mudou
Não foi geral, foi parcial
Palheta entrou na BICA
É gaiatice, é carnaval

Eu falsifico diploma
Carteiro de jornalista
Sou garoto de programa
Meu sobrenome
Se parece com dentista

Eu mando imprimir santinho
Na gráfica do Senado
Emprego a parentada
No fim sou anistiado

O Charles disse:
Seu Armando não complica
Bota a camisinha
E vem entrar na BICA


Arnaldo Garcez, Marco Gomes, Simão Pessoa (togado) e Lady Altamira

Na quinta-feira, 13 de abril, a trepidante repórter Malu Mala, do jornal satírico Candiru, furava a grande imprensa e garantia que o povo só entrou na BICA porque um juiz deixou:

A Banda Indecente Capetinhas do Armando (BICA) só foi pra rua graças ao coração bondoso de um juiz.

Quando se preparava para sair, a banda recebeu a visita do xerife Kid Klinger, que queria saber de quem era a letra da marchinha considerada atentória aos bons e aos maus costumes.

– Português, me responda sem passar a faca de cortar pernil na perna. De quem é a letra?...

– De quem é a letra, senhor doutor secretário? –, perguntou Armando, meio cabreiro.

– A letra, ora bolas!

– Ai, meu Jesus, são 23 letras do alfabeto, letras de câmbio, letras imobiliárias, pá! Como o senhor quer que eu saiba de que letra está a falaire?...

Klinger coçou a pontinha da escopeta que saía pela gola de sua camisa de linho e deixou transparecer que estava perdendo a paciência:

– E se eu pedir a ajuda aqui da “Magali” de repente tu lembras, não lembra?...

– Minha Nossa Senhora de Fátima, não só digo de quem é a letra como canto um trecho de nosso samba e rebolo as cadeiras!

– De quem é a letra? –, explodiu o xerife.

– A letra é minha, a música é do cancioneiro português.

– Então canta um pouquinho aí, portuga! –, ordenou Klinger.

Armando pegou um balde, fez de surdo, e se pôs a cantar:

– A BICA não foi pra rua/ Mas também não acovardou-se/ Cobriram a BICA com lona/ E escreveram em cima/ A BICA mudou-se”

O xerife não se convenceu e voltou a pressionar o comerciante:

– Agora canta a letra verdadeira que está circulando por aí, pô!

– O doutoire vai me desculpar, mas eu não costumo falar palavrão na frente dos mais velhos. E tem mais: já faz bastante tempo que não sirvo cerveja e muito menos tira-gosto de pernil para os rapazes que escreveram aquela letra.

– Quem são eles? – perguntou Klinger.

– Fábio Lucena, Ernesto Penafort e padre Nonato. Eu sempre falei que esses meninos eram de morte! – comentou o português.

Klinger se convenceu, mas solicitou que o Armando assinasse um Termo de Responsabilidade para que a BICA pudesse, finalmente, desfilar.

– Deus que me livre, doutoire, mas neste bar eu não assino nem cheque!

Lá fora, um montão de malucos, que já havia consumido 1.730 caixas de cervejas em lata, gritavam em coro:

– Assina! Assina! Assina!

O xerife deu o ultimato, enquanto engatilhava a “Magali” e ordenava que seus subordinados ficassem em posição de tiro.

– Se ninguém assinar a papelada, a banda só deixa o boteco passando por cima do meu cadáver!

Foi aí que lá de uma mesa dos fundos, quietinho como uma cascavel armando o bote, o lendário juiz de futebol José Pereira Motosserra, o popular Zé Pereira, levantou a mão e foi para o sacrifício.

– Eu assino!

A multidão aplaudiu o gesto de boa vontade do juiz e a BICA ganhou as ruas fazendo o carnaval da legalidade, com cinco mil foliões gritando a marchinha “Viva o Zé Pereira, viva o carnaval”.

O resto vocês já sabem e quem não souber vai continuar por fora.


A confusão com o TRE só serviu para atrair mais gente pra fuzarca


Em pé: Arimar, Mário Adolfo, Rogelio Casado (togado), Carlos Araújo e Simas Pessoa. Agachados: o jornalista Zeca Diabo e Simão Pessoa (togado, evidentemente)


Nego Dito, Hudson, Chicão Cruz, Petronila, Baretta, Mona e seu filhote


Carlos Araújo, Simão Pessoa (togado), H. Dias, Waldenyra Tomé e Mário Adolfo


O boneco do Armando se preparando para puxar o trem da alegria

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