terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Carnaval 1992 - No Reino do Jacaré


No dia 25 de outubro de 1991, o jornal Estado de São Paulo publicava a seguinte matéria:

O presidente Fernando Collor estava muito bem-humorado ontem na solenidade da descida da rampa do Palácio do Planalto e, ao contrário do que tinha feito nas últimas vezes, passou muito tempo cumprimentando as pessoas que foram à praça dos Três Poderes para vê-lo.

A solenidade reuniu figuras contrastantes, como a comediante Dercy Gonçalves, o núncio apostólico de Brasília, dom Carlo Furno, o compositor Dominguinhos e o ministro da Economia, Marcílio Marques Moreira, que estava acompanhado da filha Maria Teresa.

“Como você é lindo!”, exclamou Dercy, deixando o presidente encabulado. “Muito obrigado”, limitou-se a responder para ouvir em seguida outra declaração que o deixou ainda mais desconcertado. “Meu homem, você é o meu homem”, gritou ela, deixando o presidente ruborizado.

Dercy Gonçalves disse que não convidou o presidente para ver seu show “porque ele já tem muito o que fazer”. Segundo ela, a beleza do presidente não está no físico, mas em tudo “porque ele vai indireitar esse País”

Antes de descer a rampa,a o presidente viu os trabalhos dos vencedores da IV Mostra Nacional da Ciranda da Ciência. Diante do esqueleto de um jacaré em exposição, ele brincou, dirigindo-se a um dos vencedores. “Foi você que o matou?”, indagou. “Não”, respondeu o menino. “Ah, se o Mestrinho vê isso”, brincou Collor mais uma vez, referindo-se ao governador do Amazonas Gilberto Mestrinho, que fez campanha pela liberação da caça aos jacarés.


Pois é. Assim que assumiu o governo do Amazonas pela terceira vez, Mestrinho ganhou a fama como uma espécie de “inimigo número um” dos ambientalistas, com quem comprou brigas por defender a caça de jacarés, a partir de uma notícia, nunca confirmada, de que havia uma superpopulação de répteis assassinos no município de Nhamundá.

Os relatos, confirmados pelos moradores, davam conta de que quatro pescadores haviam sido atacados por jacarés-açu de quatro metros, quando pescavam em lagos da região.

O porta-voz do governo divulgou na mídia que havia quatro jacarés para cada habitante do município, sem explicar como chegou a esse número.

Após a repercussão da noticia, Mestrinho solicitou uma autorização especial do Ibama para iniciar a matança seletiva do réptil. O Ibama não deu a mínima.


Para completa a equação surrealista, a cidade do Rio de Janeiro havia sido escolhida para sediar da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUCED), que se realizou de 3 a 14 de junho de 1992.

A reunião ficou conhecida como Rio-92, e a ela compareceram delegações nacionais de 175 países. Foi, ainda, a primeira reunião internacional de magnitude a se realizar após o fim da Guerra Fria.

Quer dizer, enquanto o planeta se preparava para discutir o meio ambiente em escala global, no coração da Amazônia estava se discutindo a liberação da caça a animais silvestres. Os biqueiros resolveram enfrentar o governador e defender os jacarés.

Na época, o juiz Jomar Fernandes explicou que a lei que proíbe a caça comercial da fauna brasileira é de 1967, quando matança do jacaré chegou a ameaçar de extinção a espécie por causa dos chamados coureiros ou caçadores.

“Esta lei continua vigorando e assim deve continuar, pois é uma das mais avançadas do mundo, mas não proíbe o manejo inteligente da fauna que poderá ser uma ótima alternativa econômica para o homem interiorano”, garantiu.

O promotor público Francisco Cruz foi mais enfático: “A BICA, assim como o Ibama, defender que é possível à sobrevivência do homem e a preservação da natureza, sem agressões. O que a gente não concorda é com essa histeria de liberou geral para a matança de jacarés pretendida pelo governador”. O resultado foi o enredo “No Reino do Jacaré”.


No Reino do Jacaré

Autores: Fábio Lucena, Álvaro Maia e João Bosco Ramos de Lima
Médium: Afonso Toscano

Assim não dá pé,
Assim não dá pé
Pegar pra pato
O pobre do jacaré (bis)

Tão me culpando de tudo
Por todas as mazelas da população
Escolas e saúdes falidas
Falta d’água esculhambação

Querem tirar o meu couro
Sou o culpado pela devastação
A Lourdes disse
E o Armando confirmou
Jacaré não é boto
Nem é vilão
É ou não é?...
Coitado do jacaré!


A banda Demônios da Tasmânia iniciando um novo desfile

Na terça-feira, 25 de fevereiro de 1992, o jornal Amazonas em Tempo publicou a seguinte matéria:

Famosa na cidade por sua irreverência e bom humor, a Banda Independente da Confraria do Armando (BICA) saiu sábado passado para fazer um dos mais democráticos carnavais de rua de Manaus.

Mais de mil pessoal foram ao Bar do Armando, reduto de artistas, jornalistas, poetas e anarquistas, mas nem todo mundo desfilou.

Quando a banda resolveu sair, por volta das 17h, parte dos foliões decidiu ficar bebendo em frente ao boteco, ao som do trio elétrico “Abre Alas”.

Criada em 1987, por antigos freqüentadores do bar, a BICA já faz parte da tradição do carnaval de rua amazonense.

Segundo seu atual “general do samba”, Deocleciano Souza, “é o carnaval da liberdade. Aqui todos brincam sem exploração e sem violência”.

Apesar da garantia do jornalista, no inicio do desfile, um coronel da PM, que estava se divertindo, se desentendeu com um outro folião e chegaram a tocar socos.

- As pessoas que brigam são infiltrações que não costumam freqüentar o bar. No Bar do Armando todo mundo se conhece e todos se respeitam, por isso não há brigas! –, comentou o vereador João Pedro (PCdoB) que, ao lado do vereador Serafim Corrêa (PSB), fazem parte da ala política que freqüenta vez por outra o Armando.

O início do desfile da BICA foi marcado por outro desentendimento.

O “general da banda”, Deocleciano Souza, quebrando uma antiga tradição, mudou o percurso da banda.

Ao invés de autorizar a saída pela rua 10 de Julho, onde fica o bar, para tomar a avenida Getúlio Vargas, onde existe maior movimento e, obviamente, um público maior para divulgação da banda, ele mandou que os músicos (pagos com uma vaquinha feita pelos freqüentadores do bar) seguissem pela Costa Azevedo.

- Quem é o presidente aqui sou eu e ela vai por aqui! – ameaçou Deocleciano aos que insistiam em retornar a banda para descer pelo jeito antigo. “Ditadorzinho”, gritou uma militante do PT.

Depois de alguns desentendimentos, a BICA retornou ao seu local de origem e seguiu para a 10 de Julho, depois Getúlio Vargas, Sete de Setembro, Eduardo Ribeiro e novamente 10 de Julho.

Na avenida Sete de Setembro, seguindo na contramão, a BICA provocou o engarrafamento do trânsito, mas a maioria dos motoristas entendeu a brincadeira e até acenou para os brincantes.

Quando retornou ao bar, por volta das 18h40, a BICA encontrou os freezers do bar vazios.

Segundo o proprietário, das 10h até às 17h, foram consumidas 80 grades de cervejas, um total de 1.920 garrafas.

Nas sextas-feiras, o bar chega a vender em torno de 30 grades.

Pela primeira vez, a banda resolveu esquecer completamente a sua marcha, sempre trazendo temas irônicos.

Inexplicavelmente, a música que satirizava a matança de jacarés defendida pelo governador Mestrinho, que dizia “assim não dá pé, assim não dá pé, coitado do jacaré”, não foi tocada nenhuma vez, apesar do refrão ter sido decorado pelos foliões e a música ter feito o maior sucesso nos ensaios da banda.

No trecho da avenida Sete de Setembro e Eduardo Ribeiro, o que se ouviu foi o grito de guerra dos velhos biqueiros: “não tem baile de Gala, não tem baile da Chica, vem entrar na BICA, vem entrar na BICA”.


Biqueiros aguardando impacientemente o início da muvuca


Carlos Dias, Charles Stones, professor Manuelzinho e Simão Pessoa


A turma do fundão detonando algumas ampolas antes de ir pra guerra


Charles Stones, Simão Pessoa e Saleh Kit Kat, no começo da desordem

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