terça-feira, 5 de abril de 2011

GRES Reino Unido da Liberdade - Carnaval 1996


Enredo: Relato de um certo Oriente

Sobrinho do engenheiro Adib Mamede, um dos grandes colaboradores do GRES Reino Unido, o romancista Milton Hatoum é filho de uma pátria sem fronteiras.

Caso coubesse demarcação, os limites ultrapassariam o imponderável, ficariam circunscritos à linha imaginária da fantasia: seu território faria divisas com aldeias remotas, montanhas nevadas, portos, rios, florestas e igarapés.

Seja na Manaus da infância e da adolescência, desfigurada pela ação predatória da Zona Franca, seja no Líbano de seus ancestrais, país castigado por sucessivos conflitos.

Não por acaso, uma confluência que desemboca em pontos diferentes na causa, mas comuns na motivação militarista.

No caso dos manauenses, por obra da ditadura.

Na terra dos avós, um “palimpsesto de culturas”, segundo ele, por conta dos impérios e dos conflitos religiosos.


Hatoum foi benevolente com sua memória, esquadrinhada nos pormenores de um nomadismo atávico – nascido e criado em Manaus, morou em Brasília, cursou arquitetura (FAU/USP) em São Paulo, fez mestrado em literatura em Paris, depois de passar por Madri e Barcelona.

Voltou à cidade natal, onde trabalhou como professor de literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas até 1996.

O substrato desta trajetória resultou em dois livros aclamados pela crítica e traduzidos em países da Europa e nos Estados Unidos: “Relato de um certo Oriente” (1989, Prêmio Jabuti) e “Dois irmãos” (2000, Prêmio Jabuti), ambos publicados pela Companhia das Letras.

Atualmente, o escritor mora em São Paulo, e seu último livro, “Cinzas do Norte”, também foi agraciado com o prêmio Jabuti, na 48ª edição, promovida pela Câmara Brasileira de Livros.

Quando escreve, Hatoum joga todos os dados no tabuleiro da profusão de imagens e sensações caudalosas que marcaram sua vida.

Transforma-se no mercador da bela prosa poética, no mascate cuja embarcação permanece atracada no cruzamento de culturas tão díspares quanto coexistentes.

De sua mala saem vozes da tradição oral milenar oriental, cânticos de tribos perdidas no paraíso perdido, sons emitidos por curumins na selva, falas de judeus marroquinos estabelecidos na província.

De suas histórias brotam os conflitos da família árabe, as lendas amazônicas, irrompem os caboclos.

O escritor funde carneiro e arara, tanga e túnica, cedro e jacareúba, narguilé e tabaco de corda, tucum e jasmim, cunhantãs e matriarcas, mediterrânico e amazônico.

Hatoum espalha um punhado de zatar no Rio Negro e no Rio Solimões.


Na época, presidente da Câmara Municipal de Manaus, o vereador Bosco Saraiva ficou fascinado pelo romance “Relato de um certo Oriente” e sugeriu à diretoria da Reino Unido que o utilizasse como enredo.

O carnavalesco Chico Cardoso vibrou com a idéia de contar a chegada de imigrantes árabes (os mascates libaneses e sírios), que aportaram na Amazônia nas últimas décadas do século 19 para trabalhar como regatões em seringais.

O tema tinha tudo para explodir na avenida.

O romance de Milton Hatoum é o relato da volta de uma mulher, após longos anos de ausência, à cidade de sua infância, Manaus, num diálogo com o irmão distante.

História de um regresso à vida em família e ao seu ser mais íntimo, no fundo trata-se de uma complexa viagem da memória a uma ilha do passado, onde o destino do indivíduo se enlaça ao do grupo familiar na busca de si mesmo e do outro.

Odisséia sem deuses ou maravilhas de uma pobre heroína desgarrada, cujo destino problemático tem seus fios no enredo de um romance, tramado com calma e sabedoria pela mão surpreendente de um grande escritor.

O romance é quase uma arquitetura imaginária: a arte de reconstruir, no lugar das lembranças e vãos do esquecimento, a casa que se foi. Uma casa, um mundo.

Um mundo até certo ponto único, exótico e enigmático em sua estranha poesia, mas capaz de se impor ao leitor com alto poder de convicção.


Não se resiste ao fascínio dessa prosa evocativa, traçada com raro senso plástico e pendor lírico: viagem encantatória por meandros de frases longas e límpidas, num ritmo de recorrências e remansos, de regresso à cidade ilhada pelo rio e a floresta amazônica, onde uma família de imigrantes libaneses, há muito ali radicada, vive seu drama de paixões contraditórias, de culpas e franjas de luto ao redor de mortes trágicas.

A essa ilha familiar retorna a narrativa como a um ponto de recordações, aberto à atmosfera ambígua de um certo Oriente – espaço flutuante, onde velhas tradições religiosas e culturais vieram se misturar às margens da terra, com a aura do sagrado e o gosto sensual de coisas e palavras.

A narração remonta ao passado por lances retrospectivos, pela voz da narradora em que se encaixam outras vozes num coral coeso, lembrando a tradição oral dos narradores orientais: caixa de surpresas, de que saltam as múltiplas faces das personagens, num jogo de sombra e silêncio, sob a luz ardente do Amazonas.

Nela se guardam as hesitações e lacunas da memória, o que não se alcança do passado – modo oblíquo de se deparar com os limites do conhecimento do outro e de si mesmo, enigma último do ser.

Reino de figuras fugazes, mas fortes: Emir, que transita para a morte, levando nas mãos a misteriosa flor em que se cifra seu destino, o fotógrafo alemão Dorner, que capta com sua generosa atenção o final simbólico do suicida, o leitor calado e solitário da Parisiense, velho comerciante árabe, capaz de contar histórias parecidas às das Mil e Uma Noites, e a extraordinária Emilie, matriarca e matriz de toda a vida da casa, que traz aninhado no colo o novelo de história da família, origem e fim do enredo do romance.

Como outros, em nosso tempo, este é o relato de uma volta a casa já desfeita, reconstruída pelo esforço ascético de um observador de olhar penetrante, mas pudoroso, que recorda e imagina.

História de uma busca impossível, o romance é ainda uma vez a aventura do conhecimento que empreende o espírito quando se acabam os caminhos. Pois é aí que começam as viagens da memória.


O próprio Milton Hatoum, em entrevista para o crítico Davi Arrigucci Jr., explicou sua obra: “No Relato há um tom de confissão, é um texto de memória sem ser memorialístico, sem ser auto-biográfico. Há, como é natural, elementos de minha vida e da vida familiar.

Porque minha intenção, do ponto de vista da literatura, é ligar a história pessoal à história familiar: este é o meu projeto. Num certo momento de nossa vida, nossa história é também a história de nossa família e a de nosso país (com todas as limitações e delimitações que essa história suscite).

Memória? Com relação ao Relato, percebi que causou, talvez, para alguns leitores, uma certa estranheza, a estrutura de encaixes em que está vazado: vozes narrativas que se alternam... Mas, se a própria memória também é desse mesmo modo, fazer o que?...

O tempo narrativo, no livro, é um tempo fragmentário, que reproduz, de certa forma, a estrutura de funcionamento da memória: essa espécie de vertiginoso vaivém no tempo e no espaço. É precisamente essa correspondência que eu procurei imprimir à narrativa. Uma auto-biografia nunca é verossímil, nunca é verdadeira... Ela não é uma confissão de verdade.

Todo relato auto-biográfico, entre aspas, que se pretende auto-biográfico, tem uma dose de mentira, tem seu lado ficcional. É como se a linguagem friccionasse essa suposta verdade e daí surgisse a ficção, essa mentira que é a ficção...


Tanto é assim que, para minha família, para pessoas próximas à família, o Relato é um texto de ficção: eles não se reconhecem. Reconhecem-se em partes, sempre falta algo: o fio que conduz à verdade. Há, pois, essa fluidez, essa vontade de mentir: é o ‘menti vrai’ de que fala Vargas Llosa em seus ensaios.

O mesmo se dá em relatos de viagens que, na verdade, têm um elemento ficcional muito forte. É, por exemplo, o caso de Voyage en Orient de Nerval: muitas passagens são inventadas; outras, ele fisgou de textos de outros viajantes...

Assim, uma certa dose de ficção está presente até mesmo num relato de viagens, que se pretende relato de uma experiência pessoal, de encontro com uma sociedade, com uma cultura outra...

Ainda quanto a aspectos estruturais, devo dizer que pensei muito na estrutura das Mil e Uma Noites... Pensei numa narradora, numa personagem feminina que contasse essa história... E isso, por várias razões - por razões de ordem meta-lingüística, a referência a Sheharzade, e também pelo fato de a mulher na família árabe ser submissa (aparentemente...), mas, ao mesmo tempo, ser a detentora do segredo, de certos segredos da família.”

Depois de terem lido e relido o romance várias vezes, Jorge Halen, o “Chocolate”, e Paulinho Carvalho, do Grupo Raça, se isolaram durante uma semana em um hotel-fazenda de Manacapuru e quando retornaram a Manaus traziam debaixo do braço uma pequena obra-prima.

Além de ser um samba muito bonito e harmonioso, trazia um refrão esperto que dizia: “Desperta Liberdade / É hora e a vez do Morro exaltar / Maravilhosa criatura / Com sede de um dia aventurar”.

A composição incendiou os corações e mentes dos brincantes que participavam dos ensaios realizados na quadra da escola.



Samba-enredo: Relato de um certo Oriente

Compositores: Chocolate e Paulinho Carvalho

Desperta Liberdade
É a hora e a vez do Morro exaltar
Maravilhosa criatura
Com sede de um dia aventurar
Movido pelos sonhos
O Oriente é mais que minha terra
Tornou-se minha flor, o bem e o mal,
A paz e a guerra
Trajando a coragem e o amor
O sol, areia, e o mar que separou,
Mundos tão distantes
Civilizações
No cais do porto, minhas ilusões,
Minha vida é o espelho do criador
Construindo impérios por onde for
De camelo ou barco a navegar
Sou árabe, cultura milenar,
Manaus, teu solo me refez
O teu progresso fez
O mundo respeitar
Ao ver na natureza
Uma menina sem par
Durmo sonhando, esperando o amanhã
Regateando a cada manhã
A saudade do meu Reino que me faz chorar
A lua testemunha o meu cantar

O GRES Reino Unido da Liberdade fez, como sempre, um desfile tecnicamente impecável, mostrando um excelente e emocionante carnaval.

A garra da escola impressionou a platéia presente no Sambódromo, com todos os brincantes, sem exceção, cantando, dançando e evoluindo com a precisão de um relógio suíço.

O samba enredo também funcionou muito bem, retratando magnificamente a presença árabe nos rios da Amazônia (o verso “regateando a cada manhã a saudade do meu Reino” faz uma interessante analogia com os “regatões” – os primeiros mascates árabes que ajudaram a desenvolver o interior do Amazonas –, os reinos do Oriente Médio, a saudade da terra natal e a própria Reino Unido).

O carnavalesco Chico Cardoso mostrou na avenida fantasias e alegorias que, além da beleza plástica inenarrável, estabeleceram uma excelente comunicação com o público.

Resultado: Reino Unido, campeã do carnaval. O sexto título da escola foi mais do que merecido.


E aqui cabe um novo registro histórico.

Desde o início dos anos 90, um grupo de sambistas da Reino Unido tinha por hábito se reunir nos botecos do bairro para fazer rodas de samba.

Ao mesmo tempo em que se divertiam, tomando cervejas, tocando e cantando, os sambistas ajudavam os comerciantes atraindo mais freguesia.

Um dos bares freqüentados pelos músicos era de propriedade de Eldo Coelho, já falecido.

Mas a turma de pagodeiros também tocou bastante tempo no “seu” Raimundo Cunha e no boteco do Lateral.

Essa rotina mudou quando Zé Picanço, um dos integrantes da turma, sugeriu que eles fossem tocar no Botekão do Reino, barzinho da escola de samba, localizado em frente à quadra, para “dar uma força” ao Gilberto Nogueira, que, na época, era responsável pela administração do bar da agremiação.


Gilsinho Poeta, Zé Picanço e Junior Campos

Felizes da vida e ainda festejando a vitória no carnaval daquele ano, os pagodeiros começaram a realizar uma roda de samba aos sábados à tarde, em frente à quadra, no bar Botekão do Reino, com a presença de vários sambistas de Manaus, da rapaziada da bateria, da turma do Barracão e do grupo de pagode Meninos do Morro.

O sucesso foi tão retumbante que, após duas semanas, o Botekão do Reino teve de providenciar mais mesas para abrigar o crescente número de freqüentadores.

A roda de samba deixou também de fazer apresentações acústicas, passando a utilizar mesas de sons e instrumentos eletrificados.

E assim, em maio de 1996, foi fundado o “Pagode da Responsa”, com o grupo Resistência do Samba, nome sugerido por Ivan de Oliveira.

O grupo era formando, basicamente, pela rapaziada da escola: Nicéias, Bosco Saraiva, Chocolate, Iron, Daniel, Kleber, Ivan de Oliveira, Zé Picanço, Aldenor, Chico Bossa, Alde, Kelo, Gilberto e Gilson Nogueira, Demis, Bico, Zeca Diabo, Gaguinho, Galo do Reino, Helio da Luz e outros pagodeiros do Morro.

O Pagode da Responsa era realizado todos os sábados, a partir das 11h, encerrando geralmente às 17h, quando a multidão se dispersava para ir ao Bar do Boi, na TVLândia.


No ano seguinte, o encontro dos pagodeiros foi rebatizado de “Pagode da Resistência”.

Junto com o novo nome, veio também um novo horário que perdura até os dias de hoje: das 19h de sábado às 2h30 da madrugada de domingo, exceto no dia do desfile da Reino Unido e no sábado seguinte, que é tido como o “dia da análise do desfile da escola”.

Atualmente, o Pagode da Resistência é a roda de samba mais tradicional e conhecida da cidade.

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