quarta-feira, 6 de abril de 2011

GRES Reino Unido da Liberdade - Carnaval 1990


Enredo: Vem a mais de mil

Graças ao título conquistado em 1989, o presidente Bosco Saraiva, tendo como vice Jairo Beira-mar, foi reeleito para um novo biênio à frente da escola.

Com exceção de Ricardo Cabral, que deixou a vice-presidência para tomar conta da escola de samba mirim “Reino do Amanhã”, e de Jairo Beira-mar, que deixou a diretoria da Bateria para ser vice-presidente, os demais diretores permaneceram os mesmos.

A direção de bateria foi entregue ao Mestre Iron Maciel, prata da casa, vindo do projeto bateria mirim, formando com Luizinho Sá, Eldo Coelho e Edson Peninha, a nova diretoria da Bateria nota 10.

Aceitando uma sugestão de Shangai, a diretoria escolheu o enredo “A Reino Unido vem a mais de mil”, para contar na avenida a história do carnaval.

“Resolvemos escolher o próprio carnaval como tema porque ele é uma das maiores fontes de cultura popular, trazendo em seu bojo todas as formas de arte”, explicou Bosco Saraiva. “O carnaval, como toda arte, retrata o homem e seu tempo, contando sua história, recriando a vida, sendo uma das fontes mais preciosas do registro cultural.”

Segundo o pesquisador Antenor Nascentes é duvidosa a origem do vocábulo carnaval, primitivamente designativo da terça-feira gorda, tempo a partir do qual a Igreja suprime (“latim levare”) o uso da carne.

Petrocchi dá como étimo o baixo latim “carnelevamen”, modificado depois em “carne vale!”, “adeus, carne!”.

O velho pisano tinha carnelevare, o napolitano karnolevare, o siciliano karnilivari.

É possível que tenha havido simples dissimilação.

Stappers interpreta o baixo latim “carnelevamen” como “carnis lavamen”, “prazer da carne”, antes das tristezas e continências da quaresma.


Quanto à origem, o carnaval também é objeto de controvérsia: freqüentemente tem sido atribuído à evolução e à sobrevivência do culto de Ísis, das bacanais, lupercais e saturnais romanas, dos festejos em honra de Dionísios, na Grécia, e até mesmo às festas dos “inocentes” e dos “doidos”, na Idade Média, as quais, mediante sucessivos processos de deformação e abrandamento, teriam originado famosos carnavais dos tempos modernos, como os de Nice, Paris, Veneza, Roma, Nápoles, Florença, Colônia e Munique.

Mas seja qual for a sua origem, o certo é que o carnaval já era encontrado na Antiguidade clássica, e mesmo na pré-clássica, com suas danças barulhentas, suas máscaras e licenciosidades, traços que seriam mantidos praticamente até hoje.

Além disso, o carnaval pode ser considerado a festa mais completa da humanidade, pois neles estão contidos todos os sentimentos.

É uma festa considerada pagã, mas feita por gente das mais variadas e arraigadas crenças.

É uma festa mística, mítica e profana. É pura dialética.

Sendo igual na essência, o carnaval espalhou-se pelo mundo, adquirindo características locais e apresentando-se como manifestação popular regionalizada.

Por isso, sendo igual, o carnaval é diferente em cada época e lugar.


Assim como fizera no carnaval do ano anterior, Shangai optou por dividir o enredo em seis setores, sendo que alguns deles subdividiam-se regionalmente.

O enredo teria seu ponto de partida na Antiguidade, no Egito, contando a história do culto a Ísis, deusa da fertilidade, quando se registra a primeira manifestação popular identificada com o carnaval.

Do Egito ia-se para Roma, onde, no mesmo estilo, o povo festejava os “bacanais”, em louvor a Baco, o deus do vinho.

Novamente o religioso e o profano misturavam-se para formar o mais importante festejo popular no mundo, em todas as épocas.

De Roma, o enredo seguia para a Grécia, onde encontramos o povo reunido no teatro.

A música instrumental, o canto e a dança, nos festejos em honra a Dionísio, tendo como palco as célebres ruas gregas, também estavam na essência do carnaval.

Os festejos aos deuses e a vida em fantasia não poderiam ser dissociados dessa manifestação popular.

Na Idade Média encontramos o carnaval como representante do poder popular.

Depois de atravessar os áureos tempos, incluindo templos egípcios, romanos e gregos, o homem chega a um período de obscurantismo e profunda repressão.

O carnaval, porém, vence mais essa prova e se mantém como a maior e irrefreável manifestação popular.

Depois de louvar os deuses, encontramos o carnaval interferindo na sociedade.

Em uma época de grande domínio religioso, o carnaval sobrevive por força do poder popular, que obriga os clérigos a permitir e licenciar essa festa em função de sua magnitude.

O enredo mostra, então, a inter-relação entre a Igreja e o carnaval, entre o religioso e o profano.


Da Idade Média, o enredo segue em direção ao Oriente, para mostrar o carnaval colorido dos mandarins, com quimonos e bandeiras ornamentais, reis, príncipes, imperadores e sacerdotes, envolvidos por máscaras e pinturas faciais, com gueixas, guerreiros e dragões alegóricos.

De volta ao Ocidente, o enredo invoca a nobreza na França e os castelos dourados na Inglaterra.

É quando o carnaval chega aos tempos modernos e explode na Europa.

As manifestações populares deixam as ruas como único palco e chegam aos salões.

A nobreza abre os portões dos palácios e castelos na França e Inglaterra. Acontecem os grandes bailes de máscaras e os artistas criam adereços e alegorias, incorporando as artes plásticas definitivamente ao carnaval.

Ainda na Europa, o enredo falava de Veneza, na Itália, com seu carnaval romântico à base de violinos, gôndolas e gondoleiros, incluindo casais apaixonados cruzando os canais da cidade-mar e os célebres personagens das comédias italianas, Arlequim, Pierrô e Colombina, com seus trajes multicoloridos.

Do Velho para o Novo Mundo, o enredo mostrava o Brasil envolvido com os festejos populares, já que desde a época do Império o nosso país tinha no carnaval a sua mais importante manifestação popular.

Para esta abordagem, Shangai dividiu o enredo em quatro partes: Salvador, mostrando o carnaval com baianas e afoxés, Recife, com o frevo e os maracatus, Rio de Janeiro, com as escolas de samba, e Manaus, com as suas tradicionais festas carnavalescas realizadas nos clubes da cidade.

E era assim, viajando pelo tempo e pelo mundo, que o GRES Reino Unido da Liberdade ia em busca de seu bicampeonato, falando da maior manifestação cultural do planeta e mostrando o homem construindo a sua história.

Para reforçar a equipe do carnavalesco Shangai, a diretoria da escola contratou o artista plástico, coreógrafo, ator, teatrólogo e diretor de teatro Chico Cardoso, responsável pelo Grupo Origem, que, em 1989, tinha sido consagrado pelo público e pela crítica com a montagem da peça “Circo dos Bruxos”, considerado o melhor trabalho cênico apresentado em Manaus.


Israel Paulain, Patrícia Poeta e Chico Cardoso em visita ao Centro Cultural Afroreggae no Rio

Amazonense da capital, Chico Cardoso, então com 28 anos, havia estreado dez anos atrás, como autor e ator na peça “Casamento da Dona Matrinchã”, texto coletivo montado pelo Teatro Experimental do Parque Dez (TEP-10), e, ao longo da década, se transformara em uma permanente usina criativa.

Do próprio Grupo Origem, Chico Cardoso recrutou alguns artistas para trabalharem no galpão da escola de samba: Dimis Soares, ator e aderecista, com nove anos de experiência em produções teatrais, Sibele Gomes, atriz, figurinista e aderecista, cujo trabalho com tecidos era qualitativamente reconhecido, Shirley Anny, atriz e aderecista, com um amplo trabalho de pesquisa junto aos movimentos culturais do Amazonas, e Koya Refkalefsky, atriz, artista plástica e aderecista, que desenvolvia um importante trabalho no resgate de menores infratores por meio da arte-terapia.

A eles se juntaram os veteranos Nicéias Magalhães, chefe de Barracão e responsável pelo treinamento de novos aderecistas, José Alberto Saraiva, artista plástico e escultor, graduado em educação artística, e Raimundo Vitor, responsável pelo trabalho de acabamento das alegorias.

A superequipe carnavalesca estava pronta.

O samba-enredo mais uma vez foi resultado de uma parceria entre Almeron e Gilson Nogueira.

Almeron era um dos compositores mais antigos da Reino Unido, tendo participado praticamente de todas as disputas para a escolha dos sambas enredos da agremiação.

Gilson Nogueira, embora fosse um pouco mais novo como integrante da escola, também já tinha um bom tempo de casa.

Há quase quatro anos, ele era o presidente da Ala de Compositores.

Gilson integrou-se ao Reino Unido a convite do próprio Almeron.

Desde então, os dois passaram a compor juntos, não só sambas de enredos, mas diversos outros tipos de músicas, como pagodes e chorinhos.

Desde que formaram a parceria, também haviam se tornado praticamente imbatíveis durante as disputas na quadra da escola.

Desta vez, os dois empreenderam uma bem-sucedida viagem pela história do carnaval, concebendo um samba-enredo de levada empolgante.



Samba-enredo: Bebericar na fonte

Compositores: Gilson e Almeron

Intérprete: Gera da Vila Isabel

Eu vou bebericar na fonte
Com deus Baco vou me embriagar
E vou atravessar a ponte
Com paz e esperança
O baile eu vou brincar
Lá no Egito
Louvando Ísis, deusa da fertilidade,
Casais romanos abraçados
Brindam vinho à felicidade
E o artista concebeu
A arte tendo as ruas como palco
Não sucumbiu, sobreviveu,
O carnaval que hoje samba no asfalto
Amor, amor, amor,
Sonho de rei, casamento de folia,
Veja meu amor
A minha escola tem o germe da alegria
A brisa leve
Beija meu rosto no calor oriental
Os mandarins com gueixas belas
Trocam outro beijo, que legal!
Os castelos dourados
As máscaras em grande alegoria
Um gondoleiro apaixonado
Veneza é encanto e magia,
Tem Recife, Salvador, Sapucaí,
Escrevendo a cultura do meu patropi
O mesmo sentimento, o mesmo sol,
O folclore é onde dança a natureza
Manaus, Kamélia reluziu
E esse festejo vem a mais de mil
Corre, corre, lambretinha,
Leva a minha dor
Traz um mar de fantasia
E o perfume de uma flor


Para defender o samba-enredo na avenida, a diretoria da Reino Unido não fez por menos: contratou José Geraldo Cavalcante, o Gera da Vila Isabel, discípulo de Martinho da Vila, fã de Jamelão e campeão pela Vila Isabel em 1988.

Excelente profissional, Gera ensaiou exaustivamente com a bateria da escola para se assegurar de que “o samba iria explodir na avenida”.

Pernambucano de Recife, ex-jogador de futebol, devoto de Nossa Senhora da Conceição e com dois discos solos editados pela RCA Victor, Gera da Vila Isabel estava em estado de graça.

“Meu grande prêmio como artista foi ser convidado para puxar o samba de uma escola campeã”, dizia ele, antes de entrar na avenida para dar um verdadeiro show musical.

Como já foi dito, Shangai dividiu o desfile em setores.

O primeiro setor, intitulado “Carnaval, Origem e Evolução”, trazia a comissão de frente “Guardiões da Folia”, o abre-alas “A Embriaguez”, onde máscaras alegóricas mergulhadas no vinho sintetizavam o surgimento dos rituais profanos que deram origem ao carnaval.

Seguiam-se as alas “O Vinho”, origem de todas as orgias, e “Os Egípcios”, mostrando a festa de louvação a Ísis, a deusa da fertilidade.

Na seqüência, vinha o carro alegórico “O Templo de Ísis”, com sarcófagos, escorpiões, serpentes aladas e esfinges adornando o templo da deusa, em que faraós faziam rituais de adoração, as alas “Escravos Romanos”, mostrando a ascensão dos escravos romanos, que introduziram os bacanais em homenagem a Baco, o deus do vinho, e “Senhores Romanos”, onde se misturavam escravos e senhores na mesma orgia, além do terceiro carro alegórico, “Carro de Baco”, mostrando o jardim dos adoradores de Baco e suas festas (bacanais) regadas a vinho.

A bateria estava fantasiada de pierrôs, os mágicos foliões da música profana.

O segundo setor foi intitulado de “Carnaval na Antiga Grécia” e era composto pelas alas “Os Gregos”, fundadores da tragédia e da comédia, “Dionísio”, mostrando as festas dionisíacas do deus da embriaguez, e “Comédia”, que representava a arte nas ruas confundindo-se com os rituais de divindades profanas.

O terceiro setor, “A Idade Média no Carnaval”, trazia as alas “Idade Média”, em que os cruzados utilizavam-se de máscaras para a prática de orgias em grandes festas populares, “Anjos e Demônios”, em que o carnaval profanava os valores estabelecidos pela Igreja durante a Santa Inquisição, e o carro alegórico “Purgatório”, representando a catarse final, após a luta entre o Bem e o Mal.

O quarto setor, “Carnaval no Oriente”, era formado pelas alas “Os Dragões Orientais”, retratando as figuras que surgem nas festas de ruas do Oriente, “Os Mandarins”, mostrando guerreiros orientais voltando de cansativas batalhas à procura de suas gueixas, “Os Orientais Mirins”, ala só de crianças, representando malabaristas e acrobatas circenses, que estão na base das tradições orientais, o segundo casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, fantasiados de Mandarim e Gueixa, e o carro alegórico “O Templo dos Dragões”, retratando o templo onde eram realizados os rituais de fertilidade.

O quinto setor, “Carnaval Europeu”, trazia as alas “Os Coringas”, com figuras tradicionais do carnaval veneziano, “Os Franceses”, mostrando os bailes da nobreza européia nos salões dos castelos dourados, “Os Piratas”, retratando a festa dos bastardos, párias e marginais europeus, onde surgiu a legendária figura do pirata que perpetuou-se até os nossos dias, “Os Ingleses”, com uma homenagem a Carlitos, o genial vagabundo e suas melindrosas, e o primeiro casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, fantasiados de Pierrô e Colombina.

O sexto e último setor, “Carnaval no Brasil”, trazia a Ala das Baianas, simbolizando a abertura do carnaval nos trópicos, e as alas “O Frevo”, homenageando o carnaval de Recife e Olinda, “O Afoxé”, mostrando a folclórica dança negra herdada das tradições africanas, “Carnaval Carioca”, homenageando a grande festa popular na Marquês de Sapucaí, “Mestres-Salas e Porta-Bandeiras”, com foliões conduzindo os estandartes das principais escolas de samba do Rio de Janeiro e de Manaus, e o carro alegórico “Carnaval Brasileiro”, onde o Rei Momo brindava com alegria ao tríduo momesco.

Finalmente, logo após a Ala Show, com mulatas e passistas fazendo uma homenagem ao carnaval-arte, que vai se tornando o dono da noite nos palcos internacionais, vinham as alas “Havaianos na Folia”, homenageando o famoso baile do Olímpico Clube, “Gala Rionegrina”, onde era retratado o famoso baile no Salão dos Espelhos do Atlético Rio Negro Clube, considerado um dos mais tradicionais de Manaus, e o último carro alegórico, “A Kamélia”, trazendo a boneca-símbolo do carnaval amazonense no centro das frisas do Teatro Amazonas e mostrando a sua importância para a vida cultural da cidade.

O desfile da escola na avenida Djalma Batista levantou o público. “Que coisa linda, a Reino Unido!”, vibrava Gera da Vila Isabel (alguns anos depois ele se transformaria no Gera da Portela).

O samba levado no gogó não deixava ninguém ficar parado.

A arquibancada cantando junto com a escola como em nenhum outro momento do desfile – a ponto de despertar inveja em Dauro Braga, presidente da Vitória-Régia, a escola que detinha o melhor samba-enredo daquele ano.

As duas agremiações acabaram dividindo o título de campeãs do carnaval.

– Existe um ritual que a gente pratica quando vai desfilar que é um prazer à parte! –, explicou o sambista Chicão. “Tudo começa na concentração quando damos uma olhada nos carros e aos poucos vamos vendo as fantasias e encontrando com os amigos. A gente escolhe uma barraquinha, se instala, toma várias geladas e, geralmente, a Ala dos Compositores puxa sambas consagrados da escola. A gente fica ali, cumprindo nosso papel, aguardando a hora de ir para o desfile. Quando partimos pra pista, já estamos todos em comunhão. Dá aquele friozinho na espinha e entregamos a alma a Momo. Naquele desfile, além do friozinho na espinha, também tive a certeza de que a gente ia ganhar o título.”

Em março de 1990, Bosco Saraiva renuncia à presidência da escola para se candidatar a deputado estadual pelo PMDB, e assume em seu lugar o vice Jairo de Paula Beira-mar para dar continuidade aos trabalhos para o carnaval de 1991. A nova década prometia.

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