segunda-feira, 4 de abril de 2011

GRES Reino Unido da Liberdade - Carnaval 1998


Enredo: Malandro Sou Eu!

Com a conquista do tri-campeonato, a Reino Unido se preparava para mais uma eleição, em maio de 1997, onde seria escolhida a nova diretoria.

A chapa da situação partia do princípio de que “não se mexe em time que está ganhando” e exibia como trunfo os três títulos conquistados nos últimos três anos.

A chapa da oposição argumentava que “a democracia só se consolida com a rotatividade dos que estão no poder”.

Os brincantes da Reino Unido, entretanto, estavam mais interessados em ganhar títulos do que em democracia.

Nicéias Magalhães e Helio da Luz, os candidatos da situação, foram eleitos sem muito esforço.

Um simples menino do Morro. É assim que Nicéias Magalhães gosta de se definir.

E foi assim que ele, como tantos outros meninos do Morro, que fundaram a Reino Unido, se impregnou de tal forma com a paixão pelo carnaval que, aos poucos, foi se transformando num carnavalesco, no sentido mais amplo da palavra.

Desde o começo, ainda nos tempos de bloco, Nicéias esteve dentro do Barracão da escola, construindo carros e alegorias.

Ele foi assumindo, naturalmente, a responsabilidade por esse trabalho, até que em 1989, quando a Reino Unido fez brotar o histórico “Axé Mãe Preta”, que lhe deu o reconhecimento definitivo do público e seu primeiro título no grupo especial das escolas de samba de Manaus, Nicéias ganhou em definitivo o status de Mestre de Barracão.

Foi uma decisão justa que coroou um longo aprendizado, para o qual contribuíram bastante os ensinamentos de muita gente, mas, em particular, dos carnavalescos Oswaldo Jardim e Shangai, como o próprio Nicéias sempre fez questão de ressaltar.

Daí em diante, a evolução artística de Nicéias foi uma constante, atingindo seu clímax em 1995, com o enredo “Floresta, Festa e Festança”, quando ele inscreveu seu nome na seleta lista dos grandes carnavalescos da cidade.

Sua eleição para a presidência da escola foi uma decorrência natural dessa trajetória vitoriosa.

Além de humilde, atencioso e solidário, Nicéias era um legítimo representante das raízes da escola solidamente fincadas na comunidade do Morro.

Sua eleição e de Helio da Luz também tinha outra característica fundamental. Pela primeira vez na história, a nova diretoria era composta quase que exclusivamente pelo pessoal do Barracão.

Aquilo era uma demonstração eloqüente de que a escola havia atingido a maturidade e já era capaz de caminhar com as próprias pernas, sem sobressaltos, confiando na legítima “prata da casa”.

O fato de a Reino Unido ser agora administrada pelo pessoal que costumava pegar no pesado inspirou o enredo “Malandro sou eu!”, para o carnaval de 1998.

Longe de ser uma ironia à derrotada chapa de oposição (que garantia ter havido muita malandragem na apuração dos votos...), o enredo sugerido por Bosco Saraiva queria, na verdade, contar a história do samba em nosso país.


Considerado um dos maiores especialistas em MPB e samba de raiz do nosso estado, o pesquisador José Roberto Pinheiro (aka “Mestre Pinheiro”) foi encarregado de levantar os dados históricos sobre a origem afro-baiana de tempero carioca do nosso samba.

Um resumo de sua pesquisa pode ser lido abaixo:

O samba nasceu nas casas das “tias” baianas da Praça Onze, no centro do Rio (com extensão à chamada “pequena África”, da Pedra do Sal à Cidade Nova), descendente direto do lundu, nas festas dos terreiros entre umbigadas (“semba”) e pernadas de capoeira, marcado no pandeiro, prato-e-faca e na palma da mão.

Embora antes de “Pelo Telefone”, assinada por Ernesto dos Santos, o Donga (com Mauro de Almeida), em 1917, outras gravações tenham sido registradas como samba, foi esta que fundou o gênero – apesar da autoria discutida e da proximidade com o aparentado maxixe.

Também nesse estilo ambíguo são as principais composições de José Barbosa da Silva, o Sinhô, auto-intitulado “o rei do samba”, que junto com Heitor dos Prazeres, Caninha e outros pioneiros estabelece os primeiros fundamentos do setor, que ganharia uma feição mais definitiva com a chamada “turma do Estácio”.

Formada por Alcebíades Barcellos, o Bide, Armando Marçal, Newton Bastos e Ismael Silva e mais os malandros/sambistas Baiaco, Brancura, Mano Edgar, Mano Rubem (uma brodagem bem anterior aos manos do hip hop), essa corrente injeta uma cadência mais picotada no samba e tem o endosso de filhos da classe média como o ex-estudante de medicina Noel Rosa e o ex-estudante de direito Ary Barroso, que redimensionam o estilo através de obras memoráveis.

Com a explosão da era do rádio a partir dos anos 30, o samba ganha enorme difusão através de cantores como Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Mário Reis, Carmen Miranda – que consegue projetá-lo internacionalmente a partir do cinema – e mais adiante Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida e Elizeth Cardoso, entre outros.


Novas adesões como a do refinado baiano Dorival Caymmi, além das harmonias elaboradas de Custódio Mesquita, o molejo de Pedro Caetano, o figurino tropicalista de Assis Valente, a sobriedade de Sinval Silva, o populismo luxuoso de Herivelto Martins e o sotaque interiorano arrastado de Ataulfo Alves conduzem o samba para outros caminhos já ao sabor da indústria musical.

A ideologia do Estado Novo de Getúlio Vargas contamina o cenário e do malandro convertido (“O Bonde São Januário”, de Ataulfo e Wilson Batista) chega-se ao samba-exaltação cujo carro-chefe, “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, torna-se o primeiro hino brasileiro no exterior.

Empurrada pela especulação imobiliária, a Pequena África já se espalha por diversos morros e primitivas favelas de onde brotam novos bambas como Cartola, Carlos Cachaça e posteriormente Nelson Cavaquinho e Geraldo Pereira, na Mangueira, Paulo da Portela, Alcides Malandro, Manacé e Chico Santana, na Portela, Molequinho e Aniceto do Império Serrano, entre inúmeros outros.


O samba ganha status de identidade nacional através do reconhecimento de intelectuais como Villa-Lobos, que organiza uma histórica gravação com o maestro erudito americano Leopold Stokowski no navio Uruguai, em 1940, de que participam Cartola, Donga, João da Baiana, Pixinguinha e Zé da Zilda.

Depois da fundação da “Deixa Falar” por Ismael em 1928, a partir da reunião de blocos do Estácio, o fenômeno das escolas de samba toma conta do cenário. E propulsiona subgêneros, do partido-alto cantado como desafio nos terreiros ao samba-enredo, trilha para desfile das agremiações.

Iniciadas nos moldes dos ranchos, as escolas – Mangueira, Portela, Império e Salgueiro e depois Mocidade Independente, Beija-Flor e Imperatriz Leopoldinense – cresceriam até dominar o carnaval transformando-se em show bizz, com forte impacto no movimento turístico.

As concentrações urbanas que provocaram o aparecimento das primeiras danceterias populares (as “gafieiras”), também produzem seu estilo próprio, o samba-choro ou samba de gafieira, crivado de síncopes.

Viceja ainda desde a década de 30, o samba de breque – com pausas preenchidas por falas – que consagraria o personagem malandro criado por Moreira da Silva e o samba canção, mais lento, a partir de “Ai Ioiô (Linda flor)” por Araci Cortes, em 1929, posteriormente influenciado pelo bolero com enredos sentimentais de que seria expoente o gaúcho Lupicínio Rodrigues.

Em outras praças, como São Paulo, onde pontificaria o satírico Adoniran Barbosa, ou Bahia, terra dos enredos tristes de Batatinha, o samba incorporava sotaques regionais.

Após a Segunda Guerra, a influência cultural americana motiva o aparecimento da bossa nova, um modo diferente de dividir o fraseado do samba, agregando influências do impressionismo erudito e do jazz, inaugurado por João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, após precursores como Johnny Alf, João Donato e músicos como Luís Bonfá e Garoto.

O gênero teria toda uma geração de discípulos-cultores como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Durval Ferreira e grupos como Tamba Trio, Bossa 3, Zimbo Trio e os pioneiros vocais Os Cariocas.

Na mesma época, um ramal popular turbinado conhecido por sambalanço projetava o teleco-teco de Elza Soares, Miltinho, Luis Bandeira, Ed Lincoln, Luis Antonio, Djalma Ferreira e vários outros sambistas.

Dissidências internas na bossa geraram os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes.


Além disso, parte do movimento (re)aproximou-se do samba tradicional, revalorizando sambistas ditos “de morro”, como o portelense Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros e mais adiante Candeia, Monarco, Monsueto e o iniciante Paulinho da Viola.

O show “Rosa de Ouro”, do produtor Hermínio Bello de Carvalho, revela, além da dama do teatro de revista Araci Cortes, Clementina de Jesus, elo perdido das origens afro do samba.

A exemplo de seu xará Paulo Benjamim de Oliveira da mesma escola Portela – que intermediou as relações do morro com a cidade quando o samba era perseguido –, Paulinho da Viola, com sua pegada autoral mesclada ao choro, se transformaria num embaixador do gênero tradicional diante do público mais vanguardista, incluindo os tropicalistas.

Também no interior da bossa apareceria um modificador do samba, Jorge Ben com seu estilo “misto de maracatu” e uma inclinação para o rhythm & blues americano, que mais adiante suscitaria o aparecimento de um subgênero apelidado suíngue.


A princípio afastado do foco principal na era universitária dos festivais, o gênero teria sua revanche num certame específico, a Bienal do Samba e veria no final dos 60 o aparecimento do divisor de águas Martinho da Vila.

Além de popularizar o partido-alto (“Casa de Bamba”, “Pequeno Burguês”), este fluminense de Duas Barras compactou o samba-enredo – forma consagrada por autores como Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola –, ampliando sua potencialidade no mercado.

No começo dos 70, novo surto de revalorização do samba projetaria com altas vendagens três divas Alcione, Beth Carvalho e Clara Nunes, além do cantor Roberto Ribeiro e dos compositores João Nogueira, Nei Lopes e Wilson Moreira.

Descendente dos estilos de violão de Gilberto Gil (que endereçou o petardo “Aquele Abraço” para a ditadura), Baden Powell e Dorival Caymmi, João Bosco em dupla com o poeta Aldir Blanc, renovaria o samba tradicional (inclusive o de enredo), algo que Aldir continuaria a fazer com novos parceiros como Guinga e Moacyr Luz, na década de 90.


Ainda no fim dos 70, Beth Carvalho começaria a freqüentar rodas de samba do bloco Cacique de Ramos, onde descobriria o emergente movimento do pagode, desvelado em seu disco “De Pé no Chão”, de 1978.

Este ramal do samba, movido a partido-alto, pontuado pelo banjo e pela percussão do tan-tan, seria uma resposta ao ocaso do samba no início dos 80 que obrigaria os participantes a reunirem-se em fundos de quintal para mostrar suas novas composições diante de uma platéia de vizinhos.

Os primeiros discos solos desses pagodeiros saíram em plena redistribuição de renda do Plano Cruzado e projetaram de imediato as artes de Zeca Pagodinho (o único que se firmaria ao fim da onda inicial), Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra e o Grupo Fundo de Quintal, que revelaria ainda a dupla Arlindo Cruz e Sombrinha.

Também partideiro, o pernambucano Bezerra da Silva nesse mesmo período emplacaria seus sambandidos com enredos que documentam a guerra civil da sociedade partida.

O rótulo pagode seria usado equivocadamente também na década seguinte para denominar uma espécie de samba-mauriçola inspirado na balada romântica que geraria – a partir do sucesso de grupos como o Raça Negra, Negritude Jr., Art Popular e Só Pra Contrariar – o aparecimento de um número incalculável de clones com diferentes graduações de proximidade com o samba de raiz.


O tronco principal, no entanto, sobrevive alimentado pela revalorização de antigos bambas ainda em atividade como Nelson Sargento, Monarco, Noca da Portela, Wilson das Neves, Walter Alfaiate e as Velhas Guardas da Portela (vide o disco “Tudo Azul” produzido por Marisa Monte) e da Mangueira, além do trabalho persistente de ativistas como Nei Lopes, Luis Carlos da Vila, Jorge Aragão e Wilson Moreira.

O compositor Gilson Nogueira, que em parceria com o carnavalesco Chico Cardoso desenvolveu o enredo da escola, foi também o vencedor na disputa de samba-enredo.

Através de versos fortes e redondos, fortemente amarrados a uma melodia vibrante, Gilsinho cantou seu recado a todos os sambistas, cidadãos, mestiços ou não, interessados em resgatar a dignidade de nosso gênero musical por excelência.

A locomotiva da alegria estava pronta para partir.



Samba-enredo: Malandro sou eu!

Compositor: Gilson Nogueira

Intérprete: Ulisses do Reino

Despertem amantes da vida
Que a madrugada vai eternizar
Na mente, minha escola querida
Que lá de cima veio pra filosofar
A lua embelezando a passarela
Luz no terreiro com a força da raiz
Da raça negra lutadora e bela
Nasceu o samba
Que de tudo é a matriz
E um sentimento novo ecoa pelo ar
Juntando criador e criatura
Formou o meu canto mestiço
Tornou ofício, agora é que ninguém segura
O rufar desse tambor
É a batida do meu coração
No jongo, maxixe ou no calangueado
Acabo nos braços do meu violão
E hoje
A resistência é sambar, sambar
Pra ensinar uma criança
Recriando um novo jeito
Ser sambista é seu destino
Tá no sangue como herança
Molejo e cadência brasileira
Novo sucesso e o samba cresceu
Aplaude a passagem da história
Que é presente na memória
Nesse mundo, malandro sou eu
A locomotiva da alegria chegou
Chegou rompendo aurora
Veio lá do Morro contando estrelas
Nesse Pantheon de glória

Apesar do gigantismo de sua apresentação – 6.500 brincantes em 22 alas, um carro abre-alas, cinco carros alegóricos e 300 ritmistas na bateria –, a Reino Unido fez um desfile tumultuado.

Minutos antes da apresentação da escola, ainda na área de concentração, o carro abre-alas “Locomotiva da Alegria”, composto de quatro vagões, teve parte da lateral danificada e, por ordem expressa do juiz da Infância e da Juventude, Rafael Romano, a diretoria teve que mandar descer do carro cerca de 500 crianças, que desfilariam como destaques.

“Nessas condições, o carro é um fator de risco para as crianças”, avisou o juiz.

Após várias discussões entre os diretores, foi decidido formar um grande cordão de isolamento e desfilar com as crianças no papel de “pipoca”, tal como acontece nos desfiles dos blocos carnavalescos baianos.

A petizada, que estava ricamente fantasiada com roupas e cartolas coloridas, não segurou o choro.

O artista Sabá, responsável pela confecção da locomotiva, também chorou copiosamente.

A escola foi a penúltima a desfilar, com a locomotiva reduzida a dois vagões, onde iam os destaques adultos.

O carnavalesco Chico Cardoso não se cansava de levantar o ânimo dos brincantes.

“Vamos lá, moçada, vamos mostrar nossa força! Não será um pequeno problema que vai estragar a nossa festa. Os milhares de torcedores da Reino Unido estão nas arquibancadas e não podemos decepcioná-los. Vamos colocar o coração na ponta dos pés, levantar a cabeça e fazer bonito!”, dizia o carnavalesco para os foliões, indo de ala em ala.

O rufar dos tambores amenizou um pouco a tristeza dos brincantes e a escola entrou no Sambódromo mais animada do que nunca.

O carnavalesco havia dividido o desfile em cinco setores, cada qual tendo um carro alegórico como fio condutor.

O primeiro carro, “África, berço do samba”, retratava a cultura africana como matriz dos primeiros ritmos brasileiros, com as alas do “Jongo”, “Maxixe”, “Calangueado”, “Maculelê” e “Caxambu”.

O segundo carro, “O samba na casa da Tia Ciata”, retratava as primeiras reuniões nas casas das “tias” baianas da Praça Onze, no centro do Rio.

O terceiro, foi “Tempo do Rádio”, quando começa a popularização do samba por meio das ondas radiofônicas.

O quarto, “Malandragem”, homenageava os principais sambistas brasileiros, como Sinhô, Cartola, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Candeia e Nelson Cavaquinho.

No quinto carro, a escola prestava um tributo ao berço do samba chamado Morro da Liberdade.

Quando as notas dos jurados foram lidas, veio a decepção: a Reino Unido ficou em quarto lugar, com 171 pontos.

Quebrando um jejum de títulos de três anos, a Aparecida ficou em primeiro lugar (178,5 pontos), em segundo a Vitória Régia (176 pontos) e em terceiro a Balaku-Blaku (174 pontos).

A locomotiva da alegria dos meninos do Morro tinha descarrilhado e caído na ribanceira.

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