quarta-feira, 6 de abril de 2011

GRES Reino Unido da Liberdade - Carnaval 1988


Enredo: Conta Amazonas

No topo de um penhasco (69 m de altura), está localizada a igreja de Nossa Senhora da Penha de França, uma das quatro principais igrejas do Rio de Janeiro, e pode-se visualizá-la, especialmente à noite quando recebe iluminação em todo o santuário e no penhasco, à entrada da cidade, divisando a Rodovia Presidente Dutra, aos que chegam pela Avenida Brasil ou pelo Aeroporto Internacional.

Lá do alto, Nossa Senhora abençoa seus romeiros.

O bairro da Penha usou essa benção para expressar, como poucos, as virtudes suburbanas contidas na fé e na festa.

A popular Festa da Penha, realizada nos fins de semana do primeiro domingo de outubro ao primeiro domingo de novembro, se transformou em um substancial e envolvente capítulo da vida urbana carioca.

Ao seu aspecto eminentemente litúrgico, agrupam-se manifestações musicais, lúdicas e folclóricas com exposições, festas, shows, festivais e outros espetáculos ao ar livre.

A lavagem com água perfumada da escadaria da igreja é precedida de missa e procissão e virou uma espécie de “feriado” informal do Rio de Janeiro.


Pela longa escadaria – que dizem ter 365 degraus – a devoção subia, escalavrando joelhos, pagando promessas, resgatando pecados, salvando almas.

Lá embaixo, a festa coloria a praça com suas barraquinhas, a música enchia de alegria os corações e envolvia os corpos na malemolência da dança.

“Por isso, agora, lá na Penha vou mandar, minha morena pra sambar…”.

Estes versos de Noel imortalizaram o bairro da Penha e sua festa famosa, onde por décadas e décadas pontificaram os maiores sambistas do Rio.

Em outubro de 1987, Bosco Saraiva, acompanhado de um amigo, Ivanildo Carvalho, desembarca na Cidade Maravilhosa com uma idéia fixa na cabeça: contratar o carnavalesco Nei Ayan, que havia acabado de conseguir um honroso 3º lugar para o GRES Império Serrano, tendo como enredo “Com a boca no mundo, quem não se comunica se trumbica”, uma homenagem ao comunicador Abelardo “Chacrinha” Barbosa.

Naquele ano, a Mangueira havia conquistado o bi-campeonato, com “No Reino das Palavras: Carlos Drummond de Andrade”, e a Mocidade Independente de Padre Miguel o vice-campeonato, defendendo o irreverente enredo “Tupinicópolis”, de Fernando Pinto.

Ivanildo tinha um amigo que morava em Copacabana que talvez os ajudasse a localizar Nei Ayan.

O sujeito não tinha nenhuma intimidade com as escolas de samba, mas sabia onde os carnavalescos compravam os materiais para as alegorias.


Esquecidos de que era dia de lavagem das escadarias da Igreja da Penha, os três foram juntos para o “Beco do Brilho”, uma galeria de lojas que vende tudo que for possível imaginar em se tratando de carnaval.

Naquele dia, o comércio estava entregue às moscas.

Os três entraram em uma das poucas lojas abertas, onde um pachorrento comerciante lusitano fazia, despreocupadamente, um jogo de palavras cruzadas em uma das páginas do Jornal do Brasil.

Eles estavam conversando com o cidadão, em busca de informações sobre Nei Ayan, quando entrou na loja um sujeito todo de branco, como se fosse um pai de santo.

O português não contou conversa:

– Ó, pá, o Nei Ayan não sei como encontraire, mas este aqui é o carnavalesco Oswaldo Jardim, que pode vos informaire melhor!

Aí chamou o pai de santo e o apresentou para a trinca.

Os olhos de Bosco Saraiva brilharam.


Aos 28 anos, Oswaldo Jardim já era um verdadeiro mito no carnaval carioca.

Formado em Engenharia Eletrônica pelo Cefet, ele havia cursado Cenografia na UNI-Rio e trabalhava como assistente de Arlindo Rodrigues na TV Manchete, sendo responsável pelos cenários do programa da Angélica.

No mesmo ano, havia desenvolvido o enredo do GRES Estácio de Sá, “Prata da noite: Grande Otelo”.

Apesar de muito aplaudido pelo público, o enredo da escola não foi muito bem digerido pela comissão julgadora, bastante invocada com as inovações técnicas introduzidas pelo carnavalesco (reciclagem de lixo, entre outras bossas), e a Estácio acabou amargando um 10º lugar.

No ano seguinte, os carnavalescos Milton Siqueira, Paulo Cesar Cardoso e lvamar Magalhães levariam essas inovações às últimas conseqüências e a Unidos da Vila Isabel conquistaria o primeiro lugar com o inesquecível “Kizomba, festa da raça”. Mas ainda estávamos em 1987.

Oswaldo Jardim estava com um problema.

Ele havia sido contratado a peso de ouro pelo bicheiro Mineirinho da Cacuia para ser o novo carnavalesco da União da Ilha.

O bicheiro patrocinava a chapa de oposição, mas perdeu a eleição daquele ano para o então presidente Maurício Gazelle, que preferiu contratar o carnavalesco Max Lopes.

O bicheiro se comprometera a continuar pagando o salário de Oswaldo Jardim, mas o proibira de trabalhar em qualquer escola de samba do Rio de Janeiro.

Quando Bosco Saraiva o convidou para fazer o carnaval da Reino Unido, em Manaus, foi a vez de seus olhos brilharem.

O carnavalesco topou na mesma hora.

Bosco Saraiva retornou a Manaus, comunicou a contratação do novo carnavalesco para a diretoria e, em novembro, enviou a passagem aérea para Oswaldo Jardim.

Assim que colocou os pés no aeroporto Eduardo Gomes, o carnavalesco foi logo exigindo:

– Me levem para a lixeira do Distrito Industrial!

Os diretores da Reino Unido começaram a explicar que na cidade não havia uma lixeira específica para o Distrito Industrial, e que, como quase todas as indústrias eram fábricas de montagem, os refugos eram mínimos, sendo todos depositados no lixão municipal.

O carnavalesco, entretanto, estava irredutível, já ameaçando pegar o primeiro avião de volta para o Rio de Janeiro.

Foi quando Bosco Saraiva se lembrou da existência de uma lixeira “viciada”, dentro do Distrito Industrial, localizada nas proximidades da fábrica Sharp do Brasil-3 (SDB3), praticamente ao lado do Corpo de Bombeiros.

Resolveram levar o carnavalesco ao local.

Quando ele avistou a lixeira, não se conteve:

– Meu Deus, aqui está o nosso carnaval!

Incontinenti, começou a se abraçar com o lixo.

Na realidade, tratava-se de polietileno utilizado nas embalagens de aparelhos de som.

No apogeu da “maquiagem”, as montadoras retiravam a embalagem plástica original, colocavam uma etiqueta “made in ZFM”, reembalavam os produtos com uma embalagem plástica nativa e despachavam para o sul do país.

O refugo das embalagens originais era descartado na tal lixeira “viciada”.

Oswaldo Jardim fez os meninos do Morro encherem umas cinqüenta caixas de papelão com o refugo e levarem para os barracões da escola.

Só então ele ficou sabendo que o enredo era sobre os mitos e as lendas do Amazonas.

Nos dias seguintes, além de dar entrevistas para todos os jornais, rádios e emissoras de tevê – afinal de contas, era a primeira vez que um consagrado carnavalesco carioca vinha participar do desfile das escolas de samba de Manaus –, Oswaldo Jardim começou a fazer os protótipos das fantasias.

Justiça seja feita, eram fantasias belíssimas e todas feitas a partir do refugo coletado.

Só que quando elas começaram a ser produzidas em série, cadê o lixo?

Não havia polietileno suficiente na lixeira “viciada” para fazer 2 mil fantasias.

A solução foi a diretoria comprar polietileno – caríssimo! – nas poucas lojas que trabalhavam com o produto.

Os gigantescos tubos de polietileno não paravam de chegar no barracão, mas o carnavalesco parecia insaciável:

– Bosco, meu amor, eu quero milhares e milhares e milhares de folhas de polietileno porque nós vamos a-rre-ben-tar! Nós vamos a-rre-bem-tar, meu amor!

No início de janeiro de 1988, Oswaldo Jardim chamou Bosco Saraiva em um canto e veio com outra novidade:

– Presidente, as fantasias estão sob controle e tudo como manda o figurino. Agora eu preciso trazer meu braço direito, que está na Beija-Flor, para ele fazer meus carros alegóricos. Eu só confio nele!

Uma semana depois, o artista Shangai estava chegando em Manaus e indo se encafuar no barracão da escola, localizado no antigo lupanar “Saramandaia”, de onde só saiu depois que os sete monumentais carros alegóricos ficaram prontos.

Mais interessado em se divertir com os “bofes” do barracão do que em pegar no pesado, Oswaldo Jardim começou a fazer corpo mole e as coisas também começaram a desandar.

De repente, sem mais nem menos, ele reclamava da falta de material para trabalhar, abandonava o barracão e se mandava para o Hotel Imperial, onde alguns moleques o aguardavam alegremente.

Assim que tomava ciência do acontecido, a diretoria comprava o material exigido e uma equipe ia resgatar o carnavalesco no hotel.

Mas aí, ele já estava totalmente travado, incapaz de costurar um mísero botão ou desenhar um simples triângulo isósceles – por conta do karatê boliviano que praticava com sofreguidão para encarar os moleques –, e a solução era aguardar o bode passar.

Ocorre que a data do desfile estava cada dia mais próxima e isso começou a mexer com os nervos dos meninos do Morro.

Uma semana antes do grande dia, totalmente estressado pelo atraso na confecção das alegorias, Bosco Saraiva chegou a colocar um revólver na cabeça do carnavalesco:

– Olha, filho da puta, se tu não quiseres voltar pro Rio de Janeiro dentro de um caixão, termina logo a porra desse carnaval! – avisou.

Oswaldo Jardim quase sofreu um ataque cardíaco, mas conseguiu terminar as alegorias a tempo e colocou na avenida um enredo inesquecível.


A comissão de frente era formada por majestosas árvores que se mexiam, como se tivessem vida própria.

A própria escola parecia uma gigantesca floresta, com milhares de folhas, flores, cipós e árvores encorpadas, criando um efeito visual deslumbrante.

As fantasias das alas eram extremamente bonitas e criativas como há muito tempo não se via em Manaus. Os carros alegóricos eram simplesmente de tirar a respiração.

Apesar da porra-louquice, o carnavalesco carioca não havia se desviado um centímetro do enredo que a diretoria havia imaginado, e que tinha seu contraponto perfeito no empolgante samba-enredo.



Samba-enredo: Conta Amazonas

Compositores: Gilson, Almeron e Arnoldo

Ôôôô Ôôôô vem de lá
Ôôôô Ôôôô o caboclo vai falar
Ao romper a aurora lá na mata
Cai do céu gotas de prata
Que raríssima visão
Meu reino encantando a floresta
Com seu manto verde e branco
Relembrando a criação
Rairú foi buscar bem lá no fundo
A existência desse mundo
Que hoje aí está
A noite nas águas morava
E a filha da boiúna libertou ao se casar
É Pererê, Curupira e Boitatá
Uirapuru anunciou
Que a alegria vai reinar
Iara bela o teu canto me fascina
Teu sorriso de menina
Germinou a grande flor
Com Baíra vou furar favos de mel
Brincar de roda
E depois voltar pro céu
Minha linda Amazona
Como é bom amar
Sou caríua apaixonado
Com a benção de Rudá
Barões jogando cartas
Fazem da vida um imenso carrossel
Presenteiam com perfumes
Belas mulheres que enfeitam o bordel
Verde encantado é esperança
Dança, baiana, dança
O Morro conta Amazonas
Esta linda criança.

O GRES Reino Unido da Liberdade entrou na avenida Djalma Batista com 2.500 figurantes, divididos em 15 alas, uma bateria composta por 180 ritmistas, dezenas de destaques sobre seus seis carros alegóricos e mais um imponente abre-alas, dando ao carnaval de Manaus uma nova concepção de desfile.

Enquanto a escola desfilava, Oswaldo Jardim distribuía para a platéia um depoimento escrito de próprio punho:

“Nessa época do ano, nós que fazemos a festa costumamos sofrer de ansiedade, angústia e forte tensão.

Mas frio na barriga mesmo devem sentir as pessoas que se sentam no banco dos jurados.

Posição difícil, complicada e de alta responsabilidade, uma vez que estas pessoas definem os destinos daqueles que idealizam urna festa que já não mais pertence somente aos brasileiros, pois suas imagens caminham livremente pelo mundo via satélite.

Mas julgar é preciso. E, por isso, vale sempre a pena estar a todo momento revendo os critérios de julgamento.

Vejo o desfile como uma grande ópera que tem seu libreto, trilha sonora, grandes cenários e figurinos.

Porém, há uma diferença básica: não há como fazer um ensaio geral.

A filosofia da festa é completamente impregnada de espontaneidade, até de uma forte dose de improviso, visto que se trata de uma manifestação de massa (o que nunca podemos esquecer).

Apesar de todo o planejamento prévio, não podemos esquecer do fator emoção.

A própria digestão da história a ser contada só se processa dentro de quem idealiza, poucos dias antes de ela acontecer na forma de desfile, sendo necessária a oportunidade de podermos acrescentar sempre mais algum detalhe no roteiro definitivo, o que às vezes é difícil, devido às regras estabelecidas, que exigem a entrega das sinopses 30 dias antes da festa.

No que diz respeito à parte plástica, às vezes a gente se pergunta, por exemplo, o que é acabamento?

Cada estilo possui uma maneira própria de finalização.

É importantíssimo preservar as diferenças entre os trabalhos e suas formas de execução, sob pena de tornar o espetáculo monótono.

Quem define melhor suas pinceladas: Van Gogh ou Portinari?

O que parece ser mais bonito, as pinceladas soltas do holandês ou o racionalismo do brasileiro?

Transportando isso para o desfile das escolas de samba, acho importantíssimo que cada um tenha seu próprio estilo, pois precisamos de todos eles.

Acho necessário que alguém tenha a preocupação com a História que a Rosa Magalhães, carnavalesca da Imperatriz Leopoldinense, tem.

Uma coisa didática, escolar, de professora universitária mesmo.

Ela se preocupa com a verruga no dedo do pé direito de D. João VI.

Ao mesmo tempo, acho importantíssimo o estilo hi-tech do Renato Lage, carnavalesco da Mocidade Independente.

São estilos diferentes. Não há o mais bonito, daí ser difícil julgar.

Não dá para saber quem define melhor suas pinceladas, só dá para sentir, mais emoção ou menos emoção. Não gostaria de estar na pele de quem julga.

Acho dificílimo classificar emoção com números. Por enquanto, só consigo sentir.

Mas, mesmo assim, desejo à comissão julgadora muito boa sorte.”

Fazendo um desfile onde dosava perdulariamente a técnica e a emoção, a Reino Unido sacudiu a avenida.

O público cantou o samba e a escola respondeu com belas fantasias e carros alegóricos, de boa concepção e verdadeiramente originais.

O retrato habitual das lendas amazônicas, desta vez com uma visão quase cinematográfica do carnavalesco, fez as arquibancadas estremecerem.

Ao final, o grito de “É campeã! É campeã!” era claro, uníssono, e coroava a belíssima apresentação.

Quando as notas dos jurados foram abertas, entretanto, veio a decepção.

A Mocidade de Aparecida ganhava o título pela sétima vez e a Reino Unido era vice-campeã.

O título de campeã moral dado pela imprensa não desatou o nó no peito dos brincantes.

Nunca uma Quarta-feira de cinzas foi tão cinzenta.

O jeito era levantar do chão, sacudir a poeira e dar a volta por cima.

E foi isso que os meninos do Morro fizeram.

Nenhum comentário:

Postar um comentário