terça-feira, 5 de abril de 2011

GRES Reino Unido da Liberdade - Carnaval 1995


Enredo: Floresta, Festa e Festanças

Ainda lambendo as feridas por conta do desmoralizante 4.º lugar no carnaval de 1994, a diretoria da Reino Unido começa a se reunir em caráter permanente a partir de abril daquele ano, para idealizar seu próximo carnaval.

Todos os brincantes da escola eram convidados para dar sugestões sobre o tema.

Em novembro, finalmente, depois de muitos estudos, conversas e discussões, foi escolhido o enredo do carnaval de 1995, “Floresta, Festa e Festanças”, sugestão de Eldo Coelho, Diretor de Bateria da Escola, a ser posteriormente desenvolvido por Gilson Nogueira.

O enredo era uma síntese das principais festas regionais que acontecem no Amazonas, considerado um dos estados mais festeiros do país.


Sobre esse espírito festeiro dos brasileiros, mestre Gilberto Freyre, escritor pernambucano, morador de Apipucos, no Recife, descendente de senhores de engenho, garantia: “Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro. É por isso que gostamos tanto de festejar”.

Em 1933, após exaustiva pesquisa em arquivos nacionais e estrangeiros, o sociólogo publica “Casa-Grande & Senzala”, um livro que revoluciona os estudos no Brasil, tanto pela novidade dos conceitos quanto pela qualidade literária.

Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de seus próprios antepassados a história do homem brasileiro.

As plantações de cana em Pernambuco eram o cenário das relações íntimas e do cruzamento das três raças: índios, africanos e portugueses.

Em “Casa-Grande & Senzala”, o escritor exprime claramente o seu pensamento.

Ele diz: “o que houve no Brasil foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada. Os índios foram submetidos ao cativeiro e à prostituição. A relação entre brancos e mulheres de cor foi a de vencedores e vencidos.

Casa-Grande & Senzala foi a resposta à seguinte indagação que eu fazia a mim próprio: o que é ser brasileiro? E a minha principal fonte de informação fui eu próprio, o que eu era como brasileiro, como eu respondia a certos estímulos.”


Havia tempos que Gilberto Freyre procurava escrever sobre o ser brasileiro. Pressões políticas e familiares o levaram, entre 1930 e 1932, a viver o que chamou de “a aventura do exílio”.

Partiu para a Bahia e pesquisou as coleções do Museu Afro-Brasileiro Nina Rodrigues e a arte das negras quituteiras na decoração de bolos e tabuleiros.

Observou que a culinária baiana era neta da velha cozinha das casas-grandes.

Depois da Bahia partiu para a África e Portugal. Iniciou em Lisboa as pesquisas e estudos que sedimentariam o livro “Casa-Grande & Senzala”.

De Portugal, ele foi, como professor visitante, para a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, onde viajou pelo Sul e pôde constatar a existência, durante a colonização americana, do mesmo tipo de regime patriarcal encontrado no nordeste brasileiro.


“Eu venho procurando redescobrir o Brasil. Eu sou rival de Pedro Álvares Cabral. Pedro Álvares Cabral, a caminho das Índias, desviou-se dessa rota, parece já baseado em estudos portugueses, e identificou uma terra que ficou sendo conhecida como Brasil.

Mas essa terra não foi imediatamente auto-conhecida. Vinham sendo acumulados estudos sobre ela... mas faltava um estudo convergente, que além de ser histórico, geográfico, geológico, fosse... um estudo social, psicológico, uma interpretação. Creio que a primeira grande tentativa nesse sentido representou um serviço de minha parte ao Brasil.”


Sobre as festas populares, são bastante elucidativas essas suas observações: “Uma das primeiras festas, meio populares, meio de igreja, de que nos falam as crônicas coloniais do Brasil é a de São João, já com fogueiras e danças. Pois as funções deste popularíssimo santo são afrodisíacas; e ao seu culto se ligam até práticas e cantigas sensuais. É o santo casamenteiro por excelência.

(...) As sortes que se fazem na noite ou na madrugada de São João, festejado a foguetes, busca-pés e vivas, visam no Brasil, como em Portugal, a união dos sexos, o casamento, o amor que se deseja e não se encontrou ainda.

No Brasil faz-se a sorte da clara de ovo dentro do copo de água; a da espiga de milho que se deixa debaixo do travesseiro, para ver em sonho quem vem comê-la; a da faca que de noite se enterra até o cabo na bananeira para de manhã cedo decifrar-se sofregamente a mancha ou a nódoa na lâmina; a da bacia de água, a das agulhas, a do bochecho.

Outros interesses de amor encontram proteção em Santo Antônio. Por exemplo, as afeições perdidas. Os noivos, maridos ou amantes desaparecidos. Os amores frios ou mortos. É um dos santos que mais encontramos associados às práticas de feitiçaria afrodisíaca no Brasil.

É a imagem desse santo que freqüentemente se pendura de cabeça para baixo dentro da cacimba ou do poço para que atenda às promessas o mais breve possível. Os mais impacientes colocam-na dentro de urinóis velhos (...).”


No Amazonas, uma das festas mais populares é a de Santo Antônio de Borba, que atrai milhares de romeiros para o município, sejam em busca de feitiçarias afrodisíacas ou não.

Outras festas populares amazonenses buscam celebrar as riquezas naturais de cada município ou um determinado traço da cultura regional com que se identificam a maioria dos moradores.

Assim temos o Festival da Canção de Itacoatiara, a Festa do Guaraná, em Maués, o Festival do Peixe Ornamental, em Barcelos, a Festa do Açaí, em Codajás, a Festa do Cupuaçu, em Presidente Figueiredo, a Festa da Castanha, em Tefé, o Festival de Cirandas, em Manacapuru, o Festival do Tucunaré, em Nhamundá, a Festa da Banana, em Urucurituba, e assim por diante.


Uma festa popular amazonense, entretanto, se tornou conhecida nacionalmente a partir dos anos 90: a disputa entre os bumbás de Parintins, cujo ápice acontece nos dias 28, 29 e 30 de junho, na ilha de Tupinambarama, a 400 km de Manaus.

Nos três dias de festa a cidade é transformada em arena onde dois grupos de boi-bumbá – o Caprichoso e o Garantido – disputam o título de campeões do Festival Folclórico de Parintins, nome oficial da festa.

A disputa se espalha por toda a cidade, dividindo-a em duas metades opostas, uma azul e branca e outra vermelha e branca, conforme se torça pelo boi Caprichoso (boi preto) ou pelo Garantido (o boi branco).

A partir de um dado enredo, 4 mil brincantes do Boi Garantido e 4 mil do Caprichoso mostram lendas da Amazônia encenadas por tribos indígenas, fazendo alusões a cobras gigantes e onças de fogo, pássaros que trazem a noite, seres mitológicos como mapinguari, juma, curupira, pai da mata e boto encantado, além da lenda tradicional do boi, fixa para ambos os competidores.


Cada grupo apresenta seu enredo durante três horas, constituindo seis horas diárias de espetáculo.

Na década de 60, a polícia chegou a proibir a festa devido aos muitos enfrentamentos entre torcedores dos dois bois nas ruas, que destruíam o bumbá (a figura do boi, feita em papel machée ou outros materiais) adversário, provocando violência generalizada.

Mesmo atualmente, casais que torcem por bois adversários se separam, pais brigam com filhos e a reconciliação só ocorre após a festa.

Para evitar os conflitos, algumas famílias decidem se separar antes do início da festa, indo cada membro para a casa de algum amigo do boi de sua predileção, movimentando desse modo toda a estrutura social da cidade.

A alma da festa, dizem os organizadores e os observadores, é o ritmo, baseado nas batidas de surdos de 1m de diâmetro, chamadas de toadas.

O estilo do ritmo pode ser decifrado pelo nome dado ao surdo: “treme-terra”.

Com fortes e graves sons percussivos, a toada parintinense não tem a cadência do bumba-meu-boi do Maranhão e os entendidos dizem que a razão está na mistura.


Quando o ritmo do bumba-meu-boi – segundo dizem, inspirado na música tocada nos antigos salões de festa franceses – foi introduzido por nordestinos na floresta amazônica, ganhou a influência dos ritmos indígenas e novos instrumentos, como o “pau-d’água”, feito com bambu e que produz barulho de chuva, o xeque-xeque, espécie de maracá, e o charango, instrumento de cordas andino, introduzido pelo músico e jornalista Fred Góes, ex-membro do grupo Raices da América.

No boi-bumbá de Parintins, apesar da importância dos bois, o que mais chama atenção parece ser o colorido da festa dado pelas tribos.


A tribo é composta por brincantes que carregam nas costas cocares de cerca de 8m de altura e cerca de vinte quilos.

O Amo do Boi improvisa versos relacionados com o enredo e o cantador levanta a toada que é cantada pelos torcedores do grupo.

Quando o Garantido está se apresentando a “galera” adversária fica em absoluto silêncio, sem absolutamente nenhum tipo de manifestação a respeito do boi “contrário”. Nem aplausos, nem vaias. Silêncio apenas. A mesma regra é seguida pelo Caprichoso.

Tudo acontece ao som de trezentos músicos, misturando tambores, repinique e palminhas, instrumento feito com dois pedaços de madeira.

Inspirados nos textos de Gilberto Freyre e na verificação “in loco” das festas amazonenses, Gilsinho Poeta e Almeron compuseram um belíssimo samba-enredo, que logo conquistou os meninos do Morro.

O samba-enredo foi gravado por Mestre Arnoldo, o puxador de samba oficial da escola.



Samba-enredo: Floresta, festa e festanças

Compositor: Gilson e Almeron

Intérprete: Mestre Arnoldo

Encantado com os mistérios do infinito
Vai ter pajelança e ritos
Pra Tupã lhe abençoar
Festa na floresta nua
A folha flutua
E o índio vai neste bailar
Peixe de carne saborosa, extasiou
O grande guerreiro logo então se apaixonou
E o senhor da pesca acende a chama
Fazendo louvação
Que a brisa traz inspiração
Quem dera, fosse um trovador
Ou compositor pra lhe ofertar uma canção
Festival da arte popular
Em prosa e verso de um sonhador
Quem dançar levanta o braço
É dois pra lá e dois pra cá no mesmo passo
Balança, balança povo - vem
Vem no balançar do boi-bumbá
Na ilha do Garanchoso
Belas toadas te convidam pra cantar
Maués, varanda pra doçura
Um tom de formosura
Festejando o guaraná
Flores ao meu protetor
Borba tem seu redentor
Tradição dos arraiais
Frutas são pedaços deste céu
Festejos e festanças
Pra fazer o coquetel
Chegar no carnaval
Chorar de emoção
Pra desfilar no morro
E ver meu Reino campeão

Quinta escola a desfilar, a Reino Unido entrou no Sambódromo com 5 mil componentes, distribuídos em 23 alas, e nove carros alegóricos.

Os brincantes retiraram a espinha de tambaqui que estava atravessada em suas gargantas desde o último ano, quando a escola foi classificada em penúltimo lugar, e soltaram a voz na passarela, contagiando as 100 mil pessoas nas arquibancadas e levando à loucura a torcida do Morro da Liberdade, que desde as primeiras horas da tarde de sábado esperava para ver a Reino Unido passar.

O desenvolvimento do enredo contava a história de um índio deitado no meio da floresta que, de repente, ouve um som que lhe invade o espírito e lhe faz delirar.

Nesse delírio, ele inicia uma viagem fantástica, que só termina na presença de Tupã.

O deus dos Deuses emerge de uma cachoeira e concede ao assombrado indígena o dom de fazer um passeio onírico por todas as festas do Amazonas.

Assim, as alas e os carros alegóricos retratavam com perfeição as principais festas realizadas no interior de nosso estado, com figuras de destaque identificadas com cada festa respectiva.

Os cantores Candinho e Inês, por exemplo, estavam no carro alegórico que simbolizava o Festival da Canção de Itacoatiara (Fecani).


O levantador de toadas do Caprichoso, Arlindo Junior, que não perdia um ensaio na quadra, estava no carro alegórico que retratava o Festival de Parintins, e assim por diante.

O espírito de “dar a volta por cima”, com um certo tom de raiva e mágoa, foi mostrado pelo presidente de honra da escola, vereador Bosco Saraiva, que, ainda na concentração, ameaçou:

– Quem fizer a minha escola chorar esse ano, também vai chorar... E vai chorar lágrimas de sangue...

Mas, na passarela, a raiva pelo resultado injusto do ano anterior foi substituída pela garra e alegria dos sambistas.

O desfile da Reino Unido começou dez minutos depois da meia-noite e o primeiro carro, “Floresta virgem”, prenunciava a festa na floresta que a escola prometia apresentar a partir do samba-enredo.

O peixe de carne saborosa apareceu no carro “Festa do Tucunaré”, homenageando o município de Nhamundá.

Na seqüência, vieram os carros alegóricos homenageando os trovadores e compositores do Fecani, a Festa dos Bumbás em Parintins, a Festa do Guaraná em Maués e a Festa de Santo Antônio de Borba.

O penúltimo carro mostrou um coquetel de frutas para homenagear as festas da banana, do cupuaçu, do açaí, da melancia, da laranja e de outras frutas que movimentam o calendário festivo e os cofres dos municípios do interior do estado.

Bem ao seu estilo, a Reino Unido reservou o último carro para mostrar a “Apoteose do Morro”, representando uma favela que trazia as crianças do Morro da Liberdade, “que são o futuro da escola”, segundo seus diretores.

O samba-enredo de Gilson Nogueira e Almeron Resende, considerado um dos melhores do ano, foi puxado por um grupo de seis cantores de apoio – Almeron, Roque, Erasmo, Paulo Onça, Souza e Galo –, liderado por Mestre Arnoldo, que, minutos antes da escola desfilar, ainda ajudava na montagem dos carros alegóricos.

“A gente não tem descanso. O ideal era que ficássemos duas semanas descansando o gogó, mas vamos para o barracão trabalhar, para colocar a escola na avenida, cada vez mais linda, inteira e cheia de energia”, contou.

“Chegar no carnaval, chorar de emoção, pra desfilar no Morro e ver meu Reino campeão” foi o canto que contagiou Mestre Gilsinho, os 250 integrantes da bateria, liderados por Mestre Iran, e o paraplégico Albervan, que colocou a fantasia e desceu na passarela, sambando em sua cadeira de rodas, sendo delirantemente ovacionado pela multidão.

Em resumo: o desfile da Reino Unido foi verdadeiramente apoteótico e a escola, merecidamente, sagrou-se campeã do carnaval.

A outra grande surpresa foi o vice-campeonato conquistado pela Balaku-Blaku, desbancando Aparecida, Vitória Régia e Sem Compromisso.

Com o sucesso do carnaval de 1995 e a vitória da chapa de situação na eleição daquele ano, quando Luizinho Sá e Socorro Colares foram conduzidos aos cargos de presidente e vice-presidente da escola, o Morro se orgulhava mais do que nunca de sua agremiação.

Sambistas cariocas importantes, como Mestre Marçal, Gero da Portela, Monarco e Alfredo Lara, filho de Dona Ivone Lara, sempre que chegavam em Manaus davam um jeito de participarem das rodas de pagode do Morro.


Mestre Marçal e Gilsinho Poeta

Ocorre que a quadra estava precisando de uma ampla reforma, e a nova diretoria eleita imediatamente convocou a comunidade, sócios e simpatizantes para mais um novo mutirão.

Em poucas semanas começaram os trabalhos, com toda a rapaziada da bateria e do barracão colaborando voluntariamente na obra de reconstrução do piso.

Graças às doações de materiais de construção feitas por sócios e comerciantes da comunidade, como seu Raimundo, dona Coló, Pelé, Ademar do Lanche, Gatão e muitos outros, a quadra logo ficou pronta.

O GRES Reino Unido agora tinha um espaço especial para acolher com mais conforto os verdadeiros amantes do samba.

Um comentário:

  1. Só para elucidar o assunto quem introduziu o charango nas toadas de boi-bumbá foi Sílvio Camaleão, compositor do boi-bumbá Caprichoso que aprendeu (aí sim) com Fred Góes. Este aapenas tocava o instrumento no grupo Raices da América. Cito como fonte J. Carlos Portilho em entrevista a TV UFAM.

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