quarta-feira, 6 de abril de 2011

GRES Reino Unido da Liberdade - Carnaval 1986


Enredo: Coisas do Pensador

Em meados de 1985, correu o zum-zum-zum no GRES Reino Unido de que a diretoria iria receber em reunião dois políticos conhecidos: o deputado estadual João Thomé e o vereador Celso Seixas, ambos do PMDB.

“Eu fiquei revoltado, porque todos os políticos que tinham passado pela escola só haviam nos enganado”, recorda Bosco Saraiva. “Não fui à reunião. Pelo contrário, apostei com o Gil Buda que seriam mais dois sujeitos que iriam falar bonito e depois nos abandonar à própria sorte”.

Na reunião, Ivan Oliveira, relações públicas da Escola, avisou que as portas estavam fechadas para políticos de qualquer partido.

Ele relatou as desastrosas experiências com outros parlamentares que já haviam passado por lá e explicou que a única preocupação dos meninos do Morro era construir uma quadra coberta no terreno que haviam acabado de comprar e colocar em prática as atividades comunitárias propostas pela diretoria.

Apesar da forma pouco amistosa com que foram recebidos, João Thomé e Celso Seixas ficaram apaixonados pelo plano de trabalho da diretoria para transformar o Morro da Liberdade em um verdadeiro berço do samba.

Eles também ficaram sabendo que o ex-presidente, Bosco Saraiva, havia apostado contra os dois e resolveram comprar a briga.

Além de se envolverem de corpo e alma nos trabalhos comunitários, os dois parlamentares recrutaram vários amigos, entre eles o empresário Adib Mamede, para participarem da construção da quadra coberta.

Filho do então governador e hoje senador Gilberto Mestrinho, o deputado João Thomé havia conhecido Celso Seixas em meados dos anos 60.

Após o golpe militar de 64, ambos haviam sido obrigados a se mudar para o sul do país.

Os dois se encontraram pela primeira vez durante as passeatas estudantis da época, quando Celso Seixas cursava Economia na Universidade Estadual da Guanabara e João Thomé era estudante secundarista.

Celso travava sua luta pela democratização do país por meio do Diretório Universitário, enquanto Thomé fazia o mesmo à frente de um grêmio estudantil.

Tornaram-se amigos de infância.

Por causa desses embates no período das trevas, Celso Seixas teve seu apartamento invadido por policiais armados de metralhadoras, sem que os mesmos tivessem o menor respeito pela família e pelas crianças que lá se encontravam.

O jovem líder universitário, companheiro de luta de Luiz Travassos, Wlademir Palmeira, José Serra e José Dirceu, entre outros, foi preso e amargou quase 60 dias de cadeia, por ter desafiado o autoritarismo vigente.

Quando João Thomé voltou para o Amazonas, em abril de 1978, para preparar o retorno de Gilberto Mestrinho ao governo, em 82, reencontrou Celso Seixas administrando o restaurante Casa Grande e o convenceu a ingressar no MDB, o único partido de oposição à ditadura militar.

Na eleição de 1982, Celso foi o 3º candidato mais votado para a Câmara Municipal de Manaus e Thomé o 2º mais votado para a Assembléia Legislativa do Estado.

Os dois também não eram neófitos em termos de cultura popular.

Empresário da noite, Celso Seixas sempre promovia rodas de samba e shows de bossa nova nos bares e restaurantes que administrava.


Fascinado por percussão, canções de protesto e samba de raiz, João Thomé chegou a participar da diretoria do GRES Andanças de Ciganos, na época em que seu tio, o empresário Thomé Mestrinho, era presidente de honra da agremiação.

Quando conheceram os meninos do Morro, encontraram a sua verdadeira turma.

– Durante muitos anos, as pessoas foram desprezadas e discriminadas por terem nascido e morarem no Morro! –, recorda Celso Seixas. “Tudo de ruim que acontecia na cidade era atribuído a eles. Ocorreu um assalto? Foi no Morro. Ocorreu um homicídio? Foi o fulano de tal, que mora no Morro. A nossa luta inicial foi para reverter esse quadro. E isso só seria possível fortalecendo a escola de samba Reino Unido”.

– Eu perdi a aposta para o Gil Buda, mas, junto com o Morro da Liberdade, ganhei dois irmãos! – avalia Bosco Saraiva. “Celso Seixas e João Thomé são dois amigos-irmãos, daqueles capazes de morrerem abraçados comigo, se for preciso. Tanto que estão até hoje colaborando, participando e desfilando pela escola”.


Em setembro de 1985, a diretoria do GRES Reino Unido da Liberdade define o tema para o carnaval de 1986: “O Teatro apresenta: coisas do Pensador”, sobre a vida e obras do ex-governador Eduardo Gonçalves Ribeiro, com 1.300 figurantes distribuídos em 20 alas e cinco carros alegóricos.

A Comissão de Carnaval estava eufórica.

“Nós vamos mostrar o Teatro Amazonas, a Ponte de Ferro, o Prédio da Alfândega, o Relógio Municipal, o Mercado Adolpho Lisboa, o Palácio da Justiça e mais um monte de coisas, porque o homem era um trator”, avisou o carnavalesco João Batista, na primeira reunião com os artesões e aderecistas.

Na segunda reunião, a ficha caiu.

O governador Eduardo Ribeiro não tinha feito nenhuma das obras físicas citadas anteriormente.

O homem era um grande planejador urbano, muito mais preocupado em melhorar a qualidade de vida da população por meio de investimentos em infra-estrutura do que em legar obras faraônicas para a posteridade.


No seu governo, que foi breve, mas operoso, ele acabou a construção do Teatro Amazonas e do Reservatório do Mocó, criou a Imprensa Oficial, iniciou o embelezamento das principais avenidas da cidade, mandou construir as pontes de ferro e dotou Manaus de sistemas modernos de viação (bondes elétricos), luz e água com esgotos ampliados.

As dúvidas começaram a atormentar o carnavalesco João Batista.

Como fazer um carro alegórico mostrando o Reservatório de Água do Mocó?

Como transformar em alegoria carnavalesca a criação dos bairros da Vila Municipal e Cachoeirinha?

Como levar para a avenida o paisagismo que transformou uma “aldeia de palhas” em uma cidade cosmopolita com ares europeu?

A solução foi dar uma visão geral das mudanças urbanísticas ocorridas em Manaus durante o governo do maranhense e colocar um ponto de interrogação no seu suposto assassinato pelas elites locais.

Aliás, em circunstâncias que a história oficial sempre tentou camuflar como suicídio, Eduardo Ribeiro morreu aos 38 anos, em 1900, em sua residência, durante a madrugada, logo após ter ingerido um copo de leite quente para combater a insônia.

Foi armada uma pequena cena no local, com uma corda tendo sido amarrada ao pescoço do ex-governador.

Seria o primeiro caso de suicida que se enforca sentado em uma confortável poltrona, no próprio escritório, sem deixar nenhum bilhete para o tresloucado gesto.

O médico que o examinou nas primeiras horas da manhã garantiu que ele havia sido envenenado, mas teve que deixar a cidade às pressas, no mesmo dia.

Uma multidão, chorando convulsivamente, acompanhou o enterro de Eduardo Ribeiro, empurrando lentamente o bonde que conduzia seu caixão, até o cemitério de São João Batista, onde repousam seus restos mortais.


A casa onde foi feita a armação se transformou em museu Eduardo Ribeiro.

A partir desses fatos, o compositor Jorge Halen, o “Chocolate”, compôs um samba pungente, de melodia belíssima.

Num gesto tão tresloucado quanto o do aparente suicídio de Eduardo Ribeiro, Chocolate, para financiar o carnaval da escola, vendeu uma casa de sua propriedade, colocando integralmente o dinheiro recebido pela transação nas mãos da diretoria.

Ivan de Oliveira e o puxador de samba Tati do Reino viajaram para o Rio de Janeiro, onde gravaram o samba enredo, tornando-se, assim, o primeiro compacto simples e independente gravado por uma escola de samba do 2º Grupo.

As passagens e a estadia dos dois sambistas foram bancadas pelo presidente de honra, Bosco Saraiva, enquanto que o aluguel de estúdio e demais despesas foi bancado pelo dinheiro da casa própria vendida pelo Chocolate.



Samba-enredo “O Teatro apresenta: coisas do Pensador”

Compositor: Chocolate

Intérprete: Tati do Reino

Ô, lalalá laiá, ôôôôô
Vem teatrar meu amor
Vem, vamos abrir a cortina
Colorir com o verde das matas
E a prata dos peixes dos rios
Esse carnaval que me alucina
Borracha, febre que queimava o mundo inteiro
Com graça, chega Eduardo Ribeiro
Homem de cor e de valor, com rara felicidade
Começou a governar e amar
E no esplendor de suas obras
Nossa aldeia virou uma grande cidade
Chão de amor, teto de alegria,
Oh! louco “Pensador”
Que imortal engenharia
Por te chamar de louco
Ser ou não ser, eis a questão,
De tudo temos um pouco
E tudo cabe dentro do meu coração
E hoje louco eu sou
Por não saber como foi que nos deixou
Agradeço a você, baiana, por não deixar
Me enforcar nesta interrogação

Transcorrido duas décadas, ninguém poderá apagar a emoção que o desfile do GRES Reino Unido da Liberdade causou nos milhares de pessoas presentes na passarela do samba.

Foi uma apresentação revolucionária. Para um conservador, foi um desfile subversivo.

A escola conseguiu produzir beleza com um tipo alternativo de fantasia e de alegoria. Sem brilho, sem luxo e sem riqueza.

Mas as alegorias e as fantasias estavam inegavelmente bonitas.

Com um samba que pode não ter sido o melhor do ano, mas que qualquer compositor gostaria de ter feito, a escola fluiu na Djalma Batista.

O samba, por sinal, era tão bem-feito, do ponto de vista do desfile, que qualquer diretor de harmonia gostaria de ter uma música assim em sua escola. É claro que o enredo ajudou.

O enredo conduziu os componentes a um sentimento de solidariedade pelo ex-governador Eduardo Ribeiro.

E o samba, com toda certeza, funcionou como uma espécie de hino dessa solidariedade, principalmente no refrão “Agradeço a você, baiana, por não deixar/ me enforcar nesta interrogação”.

Com enredo, samba, fantasias e alegorias da melhor qualidade, o êxito nos demais quesitos foi conseqüência.

A comissão de frente foi perfeita, o mestre-sala e a porta-bandeira dançaram com paixão e arte, a escola teve harmonia, apresentou boa evolução, a bateria esteve maravilhosa e o conjunto acabou fantástico.

A escola teve garra, talento e alegria. Seus integrantes imaginavam que teriam de tirar leite de pedra, pois não houve receita suficiente para montar um carnaval de sonhos.

Mas, quando chegaram à avenida e verificaram que, além de garra, havia também beleza, o resto foi fácil.

É preciso ressaltar que contribuiu para essa disposição a conduta exemplar de vários diretores, entre os quais Celso Seixas, João Thomé, Bosco Saraiva, Jairo Beira-mar, Nicéas Magalhães e Chocolate.

Até o momento em que a escola chegou à concentração, eles foram guerreiros. Dali em diante, simplesmente foram nobres.

Ninguém os viu berrando aflitos durante o desfile, como fazem os dirigentes mais tensos.

Pelo contrário, ambos foram discretos o tempo todo, transmitindo segurança e tranqüilidade para os brincantes. Pareciam convencidos de que acabavam de liderar um trabalho para que a Reino Unido fizesse um desfile histórico, o que, de fato, aconteceu.

Campeã incontestável do desfile daquele ano, o GRES Reino Unido passou automaticamente para a categoria de Escola de Samba do 1º Grupo, mas os meninos do Morro não ficaram deitados sobre os louros da vitória.

O principal objetivo da escola, como já foi dito, era executar, durante o ano inteiro, um forte trabalho sócio-comunitário nas áreas de educação, esporte e lazer, especialmente com crianças.

Assim que as comemorações pelo título amainaram e a poeira baixou, a diretoria deu continuidade aos projetos sociais que haviam sido planejados, convencida de que aquele caminho era a verdadeira pedra de toque para tornar a comunidade ainda mais coesa, participante e solidária.


No dia 4 de maio de 1986, foi fundada a Escola de Samba Mirim Reino do Amanhã, com o objetivo de levar a criançada da comunidade para dentro da quadra da escola e formar sambistas-cidadãos.

Participaram da fundação da escola mirim, de acordo com a ata, Osmir Medeiros, Donalber Machado, Heraldo Tabosa, Wilson Monteiro, Rita de Cássia Bentes, Vicente Costa Filho, Welligton Mendes, José Rogério Magalhães, João Francisco de Oliveira, Aldenor Soares Maciel, Rety Clifler Lins, Ricardo Alves da Silva, Gabriel Cleto Ferreira, Mário Souza de Oliveira, Ivan Vieira, Elizeu Rivelino Augusto da Silva, Frank Junior de Carvalho e Arivan Batista de Andrade.

O papel da Escola de Samba Mirim Reino do Amanhã não era apenas fantasiar crianças e adolescentes.

Além do exercício da cultura do samba, os brincantes obrigavam-se a participar de projetos sócio-educativos.

Ao brilho, à cor, ao som, ao movimento do samba, surgia um caminho de educação para atenuar a marginalização e a violência.

A escola de samba mirim teve como primeiro presidente Donalber Machado e como vice Heraldo Tabosa.


Durante três meses, após a seleção dos brincantes, os dois deram início aos primeiros trabalhos sociais, ministrando cursos, oficinas e atividades como dança, teatro, música, arte carnavalesca e desenho artístico, entre outros.

“A cultura é um dos melhores instrumentos de transformação social”, diz Donalber.

Quando o grupo de crianças e adolescentes se estabilizou, Donalber e Heraldo promoveram uma eleição, para que a presidência da escola pudesse ser exercida por alguém do próprio núcleo de brincantes.

“Foi a maneira que encontramos para mostrar que a responsabilidade e o respeito independe de idade”, recorda Heraldo Tabosa.

O adolescente Aldenor Maciel acabou sendo aclamado para o cargo de presidente da Reino do Amanhã e realizou um belo trabalho com os jovens da comunidade.

Entre outras coisas, Aldenor foi responsável pela escolha do primeiro casal de mestre sala e porta bandeira mirim, Iranilde e Ranier.

Muitos anos depois, Iranilde, que idealizou o concurso rainha de bateria mirim, empunharia com muita garra o galardão da Reino Unido no papel de 1ª Porta Bandeira da escola.

Era, mais uma vez, os meninos do Morro colhendo os frutos de seu trabalho pioneiro.









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