terça-feira, 5 de abril de 2011

GRES Reino Unido da Liberdade - Carnaval 1994


Zé Picanço, Jomar Fernandes, Gilsinho Poeta e Mara Nogueira

Enredo: A Saga do Sonho Perdido contra os Guardiões do Medo

A partir de junho de 1993, sob o comando de Ivan de Oliveira e Nicéias Magalhães, se inicia uma nova reforma na quadra de ensaios do GRES Reino Unido, que desta vez ganha sua cobertura definitiva, além de vários camarotes, sala da diretoria, sala de reuniões, sala de troféus e sala de instrumentos, entre outras bossas, edificadas no andar superior.

O novo espaço físico, ampliado e melhorado, possibilita a oferta de interessantes atividades para a comunidade, como oficinas de artesanato, aulas de reforço, aulas de artes marciais, reuniões de Clubes de Mães e por aí afora.

Mais do que nunca, a escola de samba estava realmente integrada aos moradores do Morro da Liberdade.

Aquele ano prometia.

Para o compositor Gilson Nogueira, o “Gilsinho Poeta”, entretanto, 1993 foi um ano difícil, amargo, problemático, enfim, um ano pra se esquecer.

É ele mesmo que recorda, em um depoimento dado ao escritor Simão Pessoa:

“Faltando uma semana para o desfile, quando estávamos preparando o carnaval ‘Doce Vida’, um acidente de automóvel na Djalma Batista deixou a mim e à minha esposa Mara gravemente feridos.

Não consegui ver minha escola passar na TV, em razão das bandagens e efeitos dos medicamentos.

Passado o trauma, um mês depois meu pai dá sinais de fraqueza e mal estar.

Não me lembro de vê-lo gripado uma única vez na vida.

O diagnóstico foi seco, e confesso, ainda hoje não digeri direito: câncer na região estomacal.

Tentativas foram feitas, especialistas em medicina, inclusive espiritual, foram consultados, mas a fase terminal se avizinhava.

No dia 1.º de julho, meu pai partiu nos deixando um grande legado: ‘Calma, tudo tem o seu tempo!’.

Caramba! Fui dar um breve passeio na lama.

Precisava reagir, mas desde a semana daquele acidente não havia mais colocado os pés no Morro.

Foi quando decidi comparecer à reunião onde se discutia o novo enredo para 1994 (era uma terça-feira do mês de julho).

O Bosco Saraiva apresentou sua idéia sobre homenagear o Igarapé do 40 e o Aldenor Maciel falou sobre a geração cara-pintada, entre outros temas discutidos, que não me vem à memória.

Depois de repassarem a leitura, pois cheguei com certo atraso em razão de compromissos na universidade, pedi desculpas e me permiti torcer o nariz aos enredos apresentados.

Sugeri um enredo na linha fantástico-extraordinário, pujante para uma grande escola de samba, que oferecesse criatividade ao compositor e fizesse o carnavalesco realmente viajar.

O compositor David Almeida foi o primeiro a apoiar.

O Bosco bateu o martelo: ‘Próxima semana (quarta-feira), nova discussão sobre o tema!’

No amanhecer do outro dia, me fixei em uma idéia que consistia em comparar o sonho e o pesadelo, numa batalha travada entre o bem contra o mal.

Eu era o próprio laboratório.

Estava muito bem, sorrindo, cantando, sonhando, e, de repente, acidente, perdas, solidão, tristeza, pesadelo.

Escrevi o retrato de uma dor em forma de imaginário, polarizado no descanso do guerreiro, querendo novamente cantar, sorrir e descobrir que a vida, apesar de tudo, ainda valia a pena.

Ao cair a noite, vem o sono e começa o sonho, onde desfolharemos esse inconsciente.

A magia, o agradável, o aroma das flores, nos envolvem em um mundo de desejos.

Até aí, a intenção é fazer a comparação com fatos bem sucedidos na vida de uma pessoa, no mundo real.

Mas se aproxima o pesadelo, a dor, lembranças de perdas, de renúncias, e começa a grande batalha, armazenada de imagens grotescas, influenciadas pelo Senhor do Mal e seus Guardiões do Medo.

O sonho bom, que se perdeu, fraco, mas disposto a retornar ao inconsciente, entrega suas principais virtudes: a coragem, a alegria e a bondade, e se segura na esperança.

Nesta luta, nomeamos os seres pegajosos para o domínio do Mal, o pesadelo, enquanto os seres encantados da floresta lutam para proteger o Bem, o sonho bom.

Retratamos o emocional dos indivíduos, as apreensões, dificuldades, os medos, a bonança, a alegria, o bem estar, enfim, numa forma sensacionalista, fantástica, extraordinária de demonstrar emoções através dos sonhos.

O enredo foi apresentado à Comissão de Carnaval, e só na leitura do título ‘A saga do Sonho Perdido contra os Guardiões do Medo’, o Bosco já o declarou escolhido como tema para o Carnaval de 1994.

Daí para fazer o samba foi um pulo.

Eu trazia o desejo de compor um samba sem rimas, e foi um desafio à minha dor.

Aproveitei o momento para expressar minha homenagem ao compositor e amigo Célio Cruz, quando na letra do samba referi-me ao empilhamento de estrelas no céu com o título de sua canção vencedora do Festival Universitário da Canção (FUC), em Blumenau, ‘Candeia de Estrelas’.

O enredo mostrava que quando o manto de estrelas cobriu a face escura da noite, surgiram os Guardiões do Medo em seus cães alados.

Comandados pelo grande espírito do Mal, o Senhor das Trevas, vieram para roubar a felicidade dos homens e aprisioná-la no labirinto do medo.

O sonho desapareceu junto com a felicidade.

Submersos no lado escuro da vida, atormentados por terríveis pesadelos, os homens partem numa viagem fantástica em busca do sonho perdido.

A saga inicia-se com a chegada dos homens ao portal das trevas, guardado por serpentes vorazes.

A única forma de ultrapassar o portal, sem serem devorados, era deixar para trás a coragem, alimento das víboras famintas. Assim os homens fizeram.

Logo que cruzaram os arcos venenosos do portal, viram-se cercados por bruxas, feiticeiros, sapos e lagartos. Os habitantes do Jardim de Espinhos. Eram seres espectrais, que se alimentavam da alegria humana.

Decididos a continuar a jornada, os homens reúnem suas alegrias e entregam às sombras do Medo. Imediatamente uma trilha se abre no Jardim dos Espinhos, por onde seguem sem demora.

Do outro lado, estava a escuridão. Como se não houvesse outros caminhos, os homens entram nas cavernas escuras. Caem em enormes teias.

Prisioneiros de negras aranhas, outra vez os homens são obrigados a ceder. Essas famigeradas criaturas peçonhentas se alimentavam da bondade humana.

Os homens, então, para continuarem a busca, entregam às aranhas toda a bondade neles existentes.

Livres, enfim, eles chegam ao labirinto onde estavam os Guardiões do Medo, carcereiros do Sonho Perdido.

Havia ali sinistros pássaros de fogo, exigindo a esperança dos homens para permitir sua entrada no labirinto.

Como os homens recusaram entregar suas esperanças, os pássaros iniciam um vôo de guerra, investindo contra os homens, em um ataque fulminante.

Mas são interrompidos e expulsos por um exército de urubus-rei, que cruzam os céus comandados por um enorme condor, o pássaro guerreiro.

O condor observava o sofrimento humano do alto de sua montanha e resolveu interferir na contenda, trazendo consigo o exército do bem para combater as legiões do mal.

Um exército de fadas, magos, pirilampos, borboletas e duendes surgem para lutar contra o Senhor das Trevas.

A luta demora longas horas de agonia.

O labirinto do medo desmorona e o mal sucumbe. A vitória do bem começa a ser anunciada pelo sol no horizonte.

Uma estrada de luz ilumina o sonho perdido no mesmo instante em que um arco-íris surge no céu, como ponte para a travessia de volta.

E, no fim do arco-íris, a felicidade (onde o sonho sempre existirá), cercada por gnomos esperava os homens para lhes devolver as virtudes tomadas pelos seres das trevas.”

O próprio Gilsinho concebeu o samba-enredo, que tinha um andamento alegre e bem pra cima, além de traduzir fielmente a história apresentada como tema.


Samba enredo: A saga do Sonho Perdido contra os Guardiões do Medo

Compositor: Gilson Nogueira

Desfolhando o inconsciente
Naturalmente vou nos braços da magia
Candeia de estrelas bordam o céu
Olhos da noite, um prenúncio de alegria
Mas mesmo assim
Surge do nada o senhor de todo mal
Espalhando crueldade
Pra roubar a felicidade
A brisa fez-se vendaval
Nos portais enfurecidos
A minha coragem entregarei
Aos pés dos jardins das sombras
Minha alegria ofertarei
Guiado pela luz do meu destino
Até a bondade retumbou ô ô
Às margens de um imenso labirinto
Fiz da esperança, o meu sonho que sonhou
Mas o senhor do mal
E seus guardiões mandaram sucumbir o bem
Vieram com tantas bruxarias
Pragas e feitiçarias, seres do além
Fui protegido pelas asas do condor
Ao comando do amor e uma porção de urubus-rei
Raiou o sol no horizonte esquecido
E o meu sonho perdido faz agora a sua lei
Clareou!
A liberdade onde o meu reino vai sonhar
Felicidade!
O arco-íris colorindo o teu olhar

Os carnavalescos Chico Cardoso e Shangai ficaram tão empolgados com o enredo, que planejaram encenar o mesmo no Teatro Amazonas, com o grupo Origem, logo depois do carnaval.

As idéias de Gilsinho eram bastante parecidas com as do escritor J.R.R. Tolkien, falecido em 1973, que resolveu tomar para si a missão de ser o fabulista oficial da Grã-Bretanha.


Foi dentro deste projeto que nasceu a trilogia “The Lord of the Rings” (“O Senhor dos Anéis”), obra de mais de mil páginas, publicadas entre 1954 e 1955, que o consagrou Tolkien como um dos grandes narradores de aventuras do século 20 e que, muitos anos depois, ao ser filmada, se transformou em um dos maiores “blockbusters” (“arrasa-quarteirão”) da história do cinema.

Sem perder tempo, Chico Cardoso e Shangai convocaram a rapaziada para transformar suas mirabolantes idéias em alegorias e fantasias.

A partir de novembro de 1993, o Barracão da Reino Unido ficou apinhado de gente, trabalhando duro, dia e noite, em um ritmo alucinante.

Foram mais de três meses de trabalho que pareciam não ter fim.

Era gente cortando ferro, ferro sendo soldado, juntado e erguido, dando forma aos carros alegóricos.

Tinta para um lado, espelho pro outro e tome martelo transformando a folha de alumínio no brilho das alegorias.

– Quem nunca foi ao Barracão da Reino Unido não tem idéia do trabalho realizado para a gente colocar a escola na avenida – explicava Shangai, enquanto redesenhava pela décima vez mais um de seus croquis. “E quem vai ao Barracão pela primeira vez leva um susto desgraçado e faz logo a pergunta inevitável: vai dar tempo? É tanto papel, ferro, alumínio, cola, tecidos e outros materiais espalhados pelo chão, que parece faltar tempo e sobrar trabalho para tudo ficar pronto até o dia do desfile!”


Em meio a essa confusão, dezenas de verdadeiros artistas, os artistas anônimos que já fazem parte da tradição dos meninos do Morro, se revezam na faina inesgotável.

Um deles segura uma barra de ferro para cortar, outro carrega uma bobina de acetato, um terceiro dá início a uma pintura com pistola, enquanto outro se arrisca em cima de estruturas que começam a ser montadas, e assim o carnaval do GRES Reino Unido vai sendo construído, em um verdadeiro mutirão de companheirismo e voluntariedade.

A Reino Unido entrou no Centro Cultural de Manaus, mais conhecido como “Sambódromo”, que estava sendo inaugurado oficialmente naquele ano (ele havia ganho quatro novos lances de arquibancadas, totalizando os atuais seis lances), levando nove carros alegóricos e 4 mil brincantes, distribuídos em 25 alas, eletrizando a sua torcida, que superlotava as arquibancadas.

O primeiro carro da escola era o pré-abre-alas, trazendo a Coroa, símbolo da escola, encimando o título do enredo.

Em seguida vinha a Comissão de Frente, com os componentes fantasiados de Guardiões do Medo.

O desfile começava, realmente, a partir do carro abre-alas “Olhos da Noite”, secundado pelas alas “Magia da Noite”, “Candeia de Estrelas” e “Olhos da Noite”.

O segundo carro, “Senhor do Mal”, trazia as alas “da Serpente”, “da Escuridão” e “do Medo”. O terceiro carro, “Portais das Trevas”, trazia as alas “das Trevas”, “do Lodo” e “do Pesadelo”.

Em seguida vinha o 2º casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, Antonio e Socorro, fantasiados de “Filhos da Escuridão”.

O quarto carro, “Labirinto do Medo”, era seguido pelas alas “dos Lagartos”, “dos Fantasmas” e “dos Bruxos”.

O quinto carro, “Cavernas Escuras”, era acompanhado pelas alas “Sombras do Medo” e “Aranhas Negras”.

O sexto carro, “Condor Pássaro Guerreiro”, trazia as alas “do Condor”, “dos Urubus”, “dos Guerreiros” e a ala das Baianas, ricamente fantasiadas de fadas.

O sétimo carro, “Sol”, trazia as alas “do Sol”, “Gnomos da Felicidade” e “Gnomos da Esperança”, sendo seguidas pelo 1º casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira, Neguinho e Iranildes, fantasiados de Girassóis.

Em seguida vinha a “Ala da Liberdade”, composta por passistas e mulatas da Ala Show, a “Ala dos Sapos” e a “Ala do Arco-Irís”.

O monumental carro alegórico “Arco-Íris”, seguido pela “Ala dos Convidados”, encerrava o desfile.

Apesar de ter feita uma belíssima apresentação, com fantasias e alegorias de apurado bom gosto e um samba-enredo cantado maravilhosamente bem pelos brincantes, os jurados não entenderam o enredo da escola – provavelmente nenhum deles havia lido a trilogia “O Senhor dos Anéis” e ficaram abespinhados com a ousadia do desfile.

A suposta ignorância dos julgadores foi fatal para as pretensões da escola.

A Reino Unido amargou um decepcionante penúltimo lugar.

A campeã foi a Aparecida, com a Vitória Régia em 2º lugar.

Mais uma vez, era hora de sacudir a poeira e dar a volta por cima, porque a vingança dos meninos do Morro seria maligna. Estava escrito nas estrelas.

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