segunda-feira, 4 de abril de 2011

GRES Reino Unido da Liberdade - Carnaval 2003


Enredo: André Araújo, muito mais que uma avenida

Na reunião de avaliação do desfile de 2002, os diretores do GRES Reino Unido chegaram a um consenso de que os jurados – não o público, que aplaudiu a escola do início ao fim! – ainda não estavam preparados para o novo tipo de carnaval proposto pela escola.

A solução era retornar ao tradicionalismo vigente e fazer um desfile técnico, sem grandes inovações conceituais, tal como a Mocidade Independente de Aparecida costumava mostrar no Sambódromo.

A fórmula era conhecida, mas também se mostrara infalível: em 19 carnavais disputados, a Aparecida havia vencido 12 vezes, chegado em 2º lugar duas vezes e abocanhado o 3º lugar também duas vezes. Um verdadeiro fenômeno!

Por sugestão do professor, pesquisador e folclorista Alvadir Assunção, a escola resolveu homenagear o educador André Araújo, um dos grandes humanistas do Amazonas.


O carnavalesco Shangai, o partideiro Carioca e o presidente Jairo Beira-mar

O carnavalesco Shangai, que se transformara em braço direito de Laíla, presidente da Comissão de Carnaval do GRES Beija-Flor de Nilópolis, foi novamente convocado para assumir o posto deixado vago por Chico Cardoso.

O folclorista Alvadir, que havia sido aluno de André Araújo, forneceu o material bibliográfico, para que o enredo pudesse ser desenvolvido.


Nascido em 15 de outubro de 1899, em Goiana, cidade próxima de Recife (PE), André Araújo veio para o Amazonas, ao lado dos pais e irmãos, com menos de três anos de idade. Ele estudou em escolas públicas e se formou em Direito.

Depois de formado, começou a trabalhar como Promotor de Justiça, e, logo, em seguida, como Juiz de Direito.

A partir daí, percorreu quase todo o interior amazonense com a chamada “Cruzada Educacional do Amazonas”, por meio da qual estimulava a criação de escolas, em regime de mutirão, nos municípios onde ainda não existiam.

Ao todo, foram fundadas mais de 100 escolas, todas gratuitas – coisa de que ele não abria mão –, sendo que algumas permanecem funcionando até hoje, como as construídas em Manacapuru, Itacoatiara e Parintins.

Quando o governador Álvaro Maia criou o Juizado Tutelar de Menores, ele foi nomeado o primeiro juiz da nova Vara.


José Braga, André Araújo e Randolpho Bitencourt

André Araújo criou o Instituto Melo Matos, para abrigo de crianças e adolescentes em risco social e ressocialização de menores infratores, do sexo masculino, e o Instituto Maria Madalena, idem, idem, para o sexo feminino.

Ele também criou o Círculo Operário de Manaus, predecessor da Previdência Social, que fornecia gratuitamente assistência médica, odontológica e social para trabalhadores de baixa renda.

Criou, ainda, as creches circulistas Menino Jesus, para filhos de operárias.

E, finalmente, criou o Instituto Álvaro Maia, voltado para a educação de crianças cegas, surdos-mudos, portadores de deficiência mental média e portadores de deficiência física, que alcançou fama mundial.

Se não bastassem todas essas iniciativas no campo da assistência social, André Araújo fundou a Escola de Serviço Social do Amazonas, foi professor do Seminário São José, Colégios Dom Bosco e Santa Dorotéia, e da Universidade do Amazonas, onde lecionou Sociologia, Pedagogia e Ciência Política.

Ele também documentou, em fotos, as manifestações folclóricas do Amazonas, incluindo o carnaval, o boi-bumbá e os rituais afro-brasileiros da região.

Durante muitos anos, André Araújo colaborou financeiramente para a manutenção do batuque da Mãe Joana Gama, no Morro da Liberdade, de quem era muito amigo.

Ex-presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, André Araújo aposentou-se como desembargador e faleceu em sua residência, em 1975, na serena companhia de seus familiares.

Homem de pouco apreço pelos bens materiais, deixou como herança apenas uma casa, que tinha como bem mais valioso uma biblioteca particular formada por 36 mil volumes, e, claro, o seu inigualável espírito humanístico.

Na primeira semana de fevereiro de 2003, uma gigantesca carreata saiu da quadra da Reino Unido e parou em frente à Cidade das Comunicações, na avenida André Araújo, no Aleixo.


Os meninos do Morro queriam mostrar, em primeira mão, para a empresária Ritta de Araújo Calderaro, diretora-presidente da Rede Calderaro de Comunicação (RCC), o samba-enredo com que iam homenagear seu saudoso pai.

A empresária ficou emocionada.

– É muito gratificante ouvir chamarem meu pai de ‘Paim’, um apelido carinhoso, que somente a família usava – disse ela, ao escutar o samba-enredo pela primeira vez. “Esta homenagem é justa pela sua figura humana ímpar, que sempre pregou a ética, a moral e a educação. E não apenas para os jovens de Manaus, mas para toda a juventude do nosso imenso Amazonas.”

A vice-presidente da RCC, Cristina Calderaro, também não conseguiu esconder a emoção e a surpresa por aquele autêntico carnaval fora de época em frente da empresa:

– A maior homenagem que meu pai, Umberto Calderaro, disse ter recebido em vida, foi a de ser enredo da escola de samba Vitória Régia, porque sempre tivemos como maior preocupação andar de mãos dadas com o povo –, recordou Cristina. “Este ano, a história se repete, com a Reino Unido lembrando os feitos do meu avô André Araújo, que foi, acima de tudo, um educador, um homem preocupado com o social e com o resgate das crianças carentes. Esse motivo é mais do que justo para as famílias Araújo e Calderaro, inclusive seus tataranetos, desfilarem na avenida.”

– A lembrança do meu avô sempre esteve muito presente e viva em nossa família e o fato de ele ter morrido não diminuiu os exemplos que nos legou – explicou Cláudia Araújo Avelino, esposa do empresário Pauderley Avelino e filha do renomado médico Platão Araújo, um dos filhos de André Araújo. “Por isso, as nossas famílias vão se irmanar com os integrantes da escola para retribuir a homenagem e demonstrar a nossa gratidão por divulgarem todos os ensinamentos que André Araújo pregava, e que não são diferentes daquilo que busca hoje a população brasileira: justiça social, educação e resgate dos menores carentes.”


Claudia e Pauderley Avelino e Taísa, filha dos dois

Mostrando que no Morro da Liberdade as mulheres têm direitos iguais, a compositora Graça Castro assinou a letra do samba-enredo, que foi musicado pelo compositor Ulisses.

O samba caiu rapidamente no gosto popular.

Samba-enredo: André Araújo... Muito mais que uma avenida

Compositores: Graça Castro e Ulisses do Reino

Batuques, rituais, saúdam o amanhecer
O Morro como sempre é festa pra você
Justiça social, um show de educação
André Vidal de Araújo é mais povão
Explode no meu peito uma alegria
Que irradia sob a luz desta cidade
Eu canto o sonhar de um sonhador
Que na vida foi doutor
Defensor da igualdade
Em Pernambuco seu torrão
Desde menino já pisava nas estrelas
No canavial ouviu canções
E as histórias que mamãe contava
E o guardião do sonho lhe guiou
Àquela terra de um tal Mapinguari
Estudou à luz de um lampião
Surgindo um vulto, a Justiça está aqui
Paim, meu professor, me ensina a amar
Paim, meu pensador, me faz pensar
Que a vida só ensina que pensa na vida
Essa carência tem que acabar
Educador de gerações
Se destacou nas pesquisas sociais
Olhando o sofrimento de um povo
Que reagia nos folguedos regionais
Religioso inspirado
Tudo que sonhou realizou
O homem que hoje é
Orgulho e glória desse chão
Até os laços africanos desatou.


A compositora Graça Castro foi a primeira mulher amazonense a emplacar um samba-enredo entre as escolas do grupo especial

Última escola a desfilar na avenida, eram exatamente 5h03 de domingo quando a Comissão de Frente da Reino Unido começou a realizar sua coreografia especial, levantando os primeiros aplausos das arquibancadas.

Ela era formada por 12 livros, apresentados por um casal e uma criança – André Araújo e seus pais, quando chegaram a Manaus.

A coreografia, por si só, já era um pequeno resumo do enredo: os personagens entravam e saíam dos livros, até que o homenageado se transformasse em um adulto.

O casal de Mestre-Sala e Porta-Bandeira desfilou na frente do carro abre-alas, que surgiu simbolizando um grande livro – fonte da sabedoria de André Araújo.

A terra natal do educador, Pernambuco, foi lembrada logo na primeira ala, intitulada “Reisado”, com os brincantes simulando aquela popular manifestação cultural nordestina utilizada para comemorar o Dia dos Reis.

As outras quatro alas seguintes também eram dedicadas à cultura popular de Pernambuco, trazendo maracatus, bordadeiras, jangadeiros, figuras de Mestre Vitalino e cordões de caboclinhos.

O enredo se propunha contar a história de um menino nordestino que sonhou com um mundo encantado em plena floresta amazônica e que, tempos depois, não só veio a conhecê-lo pessoalmente, como também contribuiu decisivamente para transformá-lo.

A sexta ala marcou o primeiro contato de André Araújo com o inferno verde, mostrando a lenda da índia Naiá, filha de um chefe e princesa da tribo, que se apaixonou pelo reflexo da lua na água e, ao mergulhar para tocá-la, se afogou. Penalizada, a deusa Jaci, a lua, a transformou na imponente vitória-régia.

O primeiro carro alegórico, “A viagem – Pernambuco, meu torrão; Amazonas, meu destino”, representou o ponto de passagem entre os dois mundos: o da infância no Nordeste e o que agora se descortinava para André Araújo.

As alas seguintes representavam o desenvolvimento intelectual do educador, a sabedoria que trazia do berço e as áreas do conhecimento em que se especializou, como filosofia, direito e pedagogia.

O segundo carro alegórico mostrava um professor fazendo anotações em um grande quadro-negro e um aluno observando atentamente as explicações.

A alegoria chamada de “Educação à luz de lampiões”, pretendia mostrar as dificuldades enfrentadas por André Araújo quando tentou educar o povo nos municípios do interior, na época em que atuou como juiz.

Para mostrar que André Araújo dedicou grande parte de sua vida pesquisando o folclore, lutando por justiça social, incentivando a liberdade de culto e opinião, principalmente os cultos afro-brasileiros, e defendendo as classes menos favorecidas e mais vulneráveis, a Reino Unido mostrou alegorias, fantasias e carros alegóricos que retratavam essa multiplicidade de atividades do educador.

O céu já estava clareando quando o último carro alegórico entrou no Sambódromo, mas o entusiasmo dos 5 mil brincantes, espalhados pelas 23 alas, não deixava ninguém ir embora.

Com os olhos cheios de lágrima e visivelmente emocionada, a diretora-presidente da RCC e filha do homenageado, Ritta de Araújo Calderaro, foi para a passarela do samba, junto com a filha, Cristina, o genro, Mário Jr., e diversos colunistas de A Crítica, segurar uma faixa na qual agradecia, em nome da família André Araújo, a homenagem prestada pela escola de samba.

O médico Platão Araújo desfilou em um dos carros alegóricos, representando seu próprio pai. Antes de assumir seu posto na alegoria, ele falou para a imprensa que aquele era um momento muito especial.

“Não sei como expressar esse momento de grande orgulho e emoção, mas sinto que meu pai está aqui”, disse ele.

O médico, que nunca tinha sequer visto de perto um desfile carnavalesco, não hesitou em aceitar o convite para desfilar.

“Tenho muito orgulho de participar de uma festa popular como essa, da qual meu pai gostava muito”, explicou.

Ele ressaltou que André Araújo não era um grande folião, mas gostava de carnaval porque era sinônimo de aglomeração popular.

“Papai gostava de estar sempre em companhia de muita gente, principalmente de crianças”, resumiu.

O professor universitário João Bosco Araújo, outro filho do homenageado, apenas assistiu ao desfile do camarote, mas disse ter ficado muito sensibilizado com a homenagem da escola, tendo em vista que seu pai sempre foi um homem muito ligado às massas populares.

“Pude relembrar isso nesses últimos dias, examinando manuscritos deles, fotografias e os estudos sociológicos que deixou”, contou ele.

Bosco disse que seu pai não participava das festas como brincante, mas assistia a essas manifestações com alegria e respeito, registrando tudo, não só com a escrita, mas, também, com fotografias.

– Nós íamos com ele para a Eduardo Ribeiro, quando havia desfiles de carnaval, e ele se sentia em casa. Ali, ele gostava de conversar sobre a vida das pessoas, colhendo informações e registrando por escrito esses fenômenos populares –, recorda Bosco.

Segundo o professor universitário, André Araújo ajudou como pôde para melhorar a qualidade de vida dos imigrantes barbadianos em Manaus e dos negros maranhenses na Praça 14, com os quais tinha um relacionamento mais do que fraterno.

Democrata militante, André Araújo era um pai que sempre respeitava a opinião dos filhos e consultava a família para tomar decisões.

“Ele nunca discutiu autoritariamente com nenhum de nós, era muito generoso e sempre trabalhou arduamente para ajudar os pobres, as crianças excepcionais e os deficientes”, recordou João Bosco, com a voz embargada.

Idealizadora da premiação “Estandarte de Ouro” há 29 anos, a Rede Calderaro de Comunicação, em uma decisão corajosa, não realizou o certame naquele ano porque o pai da presidente da empresa estava sendo homenageado.

Na apuração oficial, a Mocidade Independente de Aparecida recebeu nota máxima nos nove quesitos, somou 180 pontos, e foi a campeã do grupo especial. A Grande Família, que chegou a surpreender no início da apuração, obteve 179,3 pontos e ficou em segundo lugar. Com 177,2 pontos, a Reino Unido foi a terceira colocada.

André Araújo iria ficar contente.

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